Morre o poeta e tradutor Claudio Willer aos 82 anos

Escritor tratava de um câncer na bexiga e estava internado em São Paulo

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Por Wilson Alves-Bezerra
Atualização:

O poeta e tradutor Claudio Willer morreu nesta sexta-feira, 13, aos 82 anos, vítima de câncer na bexiga. Ele começou a ter problemas em setembro e foi internado na Instituição de Longa Permanência para Idosos, no bairro do Brooklin, em São Paulo. No momento de sua morte, estava amparado por amigos. O velório será no crematório da Vila Alpina.

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No momento em que Claudio Willer (1940-2023) nos deixa, resta a pergunta sobre como mensurar a contribuição de um artista ao final de sua vida. Poeta, tradutor, ensaísta, crítico, prefaciador, Willer atravessou a vida cultural de São Paulo - de província a megalópole - e deixou suas marcas.

Filho bem-nascido de um casal de judeus alemães, exilados em São Paulo, Claudio conheceu na juventude e tornou-se parceiro de figuras fundamentais das letras nacionais: os poetas Roberto Piva (1938-2010), Antonio Fernando de Franceschi (1942-2021), Roberto Bicelli (1943) e Rodrigo de Haro (1939-2021), o editor Massao Ohno (1936-2010) e a artista plástica Maninha Cavalcante (1945-2021). Todos eles e muitos outros compõem o que se convencionou chamar a geração dos Novíssimos - por conta da antologia e da coleção lançada por Massao - título eufórico que reflete tempos em que o fetiche do novo, lançado pelo modernismo, era ainda uma utopia na qual se podia acreditar.

Os amigos de Claudio, leitores ávidos, devoravam os poemas que encontravam disponíveis nas livrarias do centro de São Paulo - Francesa, Quixote, Lello, Palácio do Livro - nas mesas do Paribar, nos fundos da Biblioteca Mário de Andrade. Essas descobertas literárias, que passam por San Juan de la Cruz, os beats, Jorge de Lima, Fernando Pessoa, André Breton, são magnificamente contadas por Ugo Giorgetti no documentário Uma outra cidade (2000), pelo livro-entrevista Os dentes da memória (2011), de Renata D’Elia e Camila Hungria, e mais recentemente pelas memórias do próprio Claudio - Dias ácidos, noites lisérgicas (2019) - e de Roberto Bicelli - ¡¿Sério?! (2022) - ambos publicados pela editora Córrego.


O poeta e tradutor Claudio Willer  Foto: Evelson de Freitas / Estadão - 9/9/2010


Do cruzamento entre afetos, leituras dos beats, místicos e surrealistas, foi se construindo a poesia de Roberto Piva e Claudio Willer. Roberto Bicelli tenderia mais à síntese e ao jogo malandro de significantes, à moda de Oswald ou do haikai; De Franceschi à sobriedade, à infância, ao mar - se é que se podem resumir poéticas e vidas inteiras em apressadas linhas, quando nem todos os poetas estão já para nos desmentir.

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E à moda do que estavam fazendo e seguiriam fazendo os concretistas paulistanos - “os poetas inteligentes”, nas palavras de Claudio - também eles, e principalmente Willer, traduziram do original o seu paideuma, para que sua própria poesia ganhasse legibilidade no ambiente nacional, posto que seus poemas eram filhos do mundo, mais do que da tradição nacional: Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Charles Bukowski, Lautréamont, Antonin Artaud, entre outros, se fizeram-se conhecer na língua portuguesa através de traduções e estudos de Willer. É preciso dizer que cada uma dessas traduções entrou no cânone nacional, são constantemente reeditadas e seguirão sendo reimpressas pelos anos afora.

Principalmente ao longo dos anos oitenta e noventa, era comum encontrar resenhas e artigos de Willer nas revistas então em voga - Veja, Istoé, Senhor, Leitura, além da subversiva Chiclete com Banana. Aliás, quem o conhecesse nos anos noventa, quando atuou como assessor de cultura da prefeitura de São Paulo, gestão Celso Pitta, poderia pensar estar diante de um burocrata. Olhando mais de perto, não era nada disso: na Funarte, onde trabalhava, abria espaço para os Cursos Órficos, de Roberto Piva, e lá circulavam figuras como Jorge Mautner, a quem se estava criando uma sala com seu nome e Roberto Bicelli. Não era raro encontrá-los nos intervalos das oficinas de um então bem pouco celebrado Piva, fazendo as piadas mais estapafúrdias.

No primeiro ano do milênio seguinte, com o documentário de Giorgetti transmitido e retransmitido pela TV Cultura e o relançamento triunfal de Paranoias (1963), o primeiro livro de Piva, com fotos de Wesley Duke Lee (1931-2010), foi o início de uma consagração mais ampla dos poetas, que se apresentaram em sua dimensão mais vigorosa e influente. Uma nova geração os estava descobrindo. Passou-se a dar mais atenção a Anotações para um Apocalipse (Masso Ohno, 1964), Dias Circulares (Massao Ohno, 1976), Jardins da Provocação (Massao Ohno, 1981) de Claudio, reunidos sob o título Estranhas Experiências (Lamparina, 2004). Mais do que isso, começou-se a criar maiores condições de compreensão e recepção à obra do grupo, através de obras dos próprios, como o luminoso ensaio biográfico Volta (Iluminuras, 1996), de Willer, que fornece a chave vida-poesia-escritura para compreender-se a que vieram esses cidadãos. Nessa fase, cresceram os leitores, o reconhecimento, as teses dedicadas e ele e à sua geração, sua influência, como crescia sua vida no recém-surgido mundo digital, na rede social, e assim os seguidores dispostos a chamá-lo de mestre, os jovens pedindo leituras e prefácios, aos quais Claudio costumava acolher com entusiasmo.


O poeta e tradutor Claudio Willer Foto: Evelson de Freitas / Estadão - 9/9/2010


Já nesse momento, rebelde, espirituoso e lúcido, Claudio valeu-se de bolsas de doutorado e pós-doutorado, quando as havia, para escrever seus dois ensaios de fôlego: Um obscuro encanto - gnose e o gnosticismo na poesia moderna (Civilização Brasileira, 2009) e Rebeldes - geração beat e anarquismo místico (L&PM, 2014). Ainda se equilibrava com cursos, oficinas, consultorias. Já na década seguinte, ao fim dos governos Lula e Dilma - aos quais ele foi muito crítico em vários momentos - adveio a crise econômica mais brutal: escassearam as bolsas, as oportunidades de cursos e palestras. Para um rebelde como ele, as universidades tampouco eram um lugar muito hospitaleiro: escrevia ensaios que não se encaixavam na produção acadêmica do atual modelo produtivista da universidade nacional; a extensão universitária sim se lhe abria, com espaço para criação de novos leitores, mas jamais com o suficiente para o sustento.

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Então adveio a penúria: apartamento vendido, despejo, carestia. Claudio e a companheira Maninha Cavalcante, já doente de um câncer, foram viver num apart hotel, para o qual não tinham dinheiro para honrar os débitos. Deixou o apart hotel, semanas depois, alegando a verdade: não tinha como pagar a conta. Iniciaram-se campanhas entre os amigos para arrecadar fundos para garantir uma vida digna de escrita e conhecimento para que não fosse preciso renunciar ao único ofício que lhe justificava a existência: o do verbo.

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Claudio finalmente se mudou para um apartamento bancado em grande parte por uma rede de poetas que se reuniu em torno à causa willeriana (o adjetivo era dele). E assim passou os últimos quatro anos: escrevendo, publicando, enquanto tudo o mais desabava: o país, a saúde da sua companheira, e ele próprio com o difícil luto a partir de meados de 2021. Um tumor que há tempos o espreitava em sua bexiga, sem que ele o considerasse frontalmente, decidiu se alastrar.

Neste momento em que ele nos deixa, é preciso refazer a pergunta sobre seu legado, pois há algo ainda a ser dito: além do visível e evidente - as traduções, os estudos sobre a geração beat, o surrealismo, a gnose e o gnosticismo - há outro: leitor ávido dos temas aos quais se dedicou, sua biblioteca está igualmente povoada por dezenas de livros e manuscritos de jovens poetas, tocados por suas oficinas literárias e desejosos de suas palavras de apresentação. Sua influência foi enorme como sua paciência com os poetas de seguidas gerações. Sua obra permanece na de muita gente.

É muito triste perder um poeta, um poeta amigo, mesmo que a integralidade de seus escritos esteja em catálogo, inclusive na nova edição de sua poesia reunida, Poemas para ler em voz alta (Ibis Libris, 2022), recém-lançada. Há algo que se esvai, irreparável: olhares, gestos, piadas, frases feitas, o tom de voz na leitura apaixonada de poemas, tudo isso que torna cada sujeito único. Esse núcleo da dor, nós o circundamos, como sempre fazemos, com arte, poesia, saudade.

Sirva-nos então de fecho ao texto, e de despedida a Claudio Willer e à sua vida plena de afetos e literatura, o poema do amigo que esteve com ele ao longo de toda a trajetória, o sempre solar Roberto Bicelli, que ensaiou uma vez um oloroso “epitáfio” tibetano: “Aqui jaz mim.”

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* Wilson Alves-Bezerra é poeta e professor da UFSCar.

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