A alemã Nora Krug (1977), uma artista com vasta experiência em entrevistar pessoas e ouvir suas histórias de guerra, se deu conta de que ela mesma nunca tinha olhado para si por esse ângulo. Nunca tinha mergulhado na história de sua família. Foi com a graphic novel Heimat: Ponderações de Uma Alemã Sobre sua Terra e História (Quadrinhos na Cia.), escrita 16 anos depois de ela ter deixado seu país para viver em Nova York, que ela estreou no Brasil, em 2019. Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip 2023), ela falou sobre sua obra na mesa que dividiu com o brasileiro José Henrique Bortoluci, autor de O Que é Meu (Fósforo), sobre seu pai caminhoneiro.
“Eu trabalhei num projeto visual de narrativas curtas sobre a guerra e me perguntei por que só escrevi histórias de guerra de outras pessoas, pessoas comuns - mas não dos alemães. Descobri que era um tabu para mim porque, na Segunda Guerra Mundial, nós éramos os responsáveis - e como você conta a história sendo o responsável?”, disse ela. Nesse momento ela se deu conta de o motivo para trabalhar tanto o tema da guerra era justamente porque é alemã. E foi então investigar suas origens.
Fez isso não apenas para descobrir quem eram meus avós e o que eles fizeram ou não fizeram durante o nazismo, mas, sobretudo, para entender o que significa pertencer, o que significa ser alemão hoje e como se encaixar como indivíduos.
“E acho que uma das principais razões pelas quais decidi escrever e ilustrar este livro foi porque, como alemã da minha geração, pelo menos na Alemanha Ocidental, cresci num ambiente escolar em que a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto foram muito ensinados - fomos aos museus, aos campos de concentração, conversamos com sobreviventes. Mas tudo o que aprendemos foi no nível coletivo.”
Ela completa dizendo que eles não eram incentivados a abordar o assunto de um ângulo pessoal. “Os professores não pediam para entrevistarmos nossos avós ou para tentarmos descobrir o que acontecia nas nossas ruas, nas nossas casas, nas nossas cidades, porque isso tudo era um tabu.”
Isso ela só percebeu quando foi embora.
“Hannah Arendt disse que onde todo mundo é culpado, ninguém é culpado. Quando saí e fui para Nova York, que é uma cidade muito judaica, eu certamente me tornei a representante alemã. Você carrega dentro de si o passado do seu país e de repente você se torna o representante desse país. E de repente percebi que eu não tinha, de forma alguma, confrontado esse assunto em um nível pessoal, que tudo era apenas coletivo e contado por meio do coletivo.” Foi a hora de mexer nos arquivos familiares.
“Memorialização coletiva e individual são igualmente importantes, se conectam, mas têm significados e valores separados. É importante lembrarmos coletivamente porque isso mostra o compromisso de um país e também que estamos juntos nesta tarefa de confrontar nosso passado. Mas também precisamos ir aos arquivos para descobrir se nossos ancestrais tinham escravos, se nossos avós foram nazistas. Precisamos assumir uma responsabilidade pessoal porque faz parte de compreender a história e de escrever a história. As narrativas pessoais são muitas vezes esquecidas na escrita da história e penso que precisamos prestar mais atenção a elas.”
Ainda sobre a responsabilização pessoal por um trauma coletivo, Nora contou que sempre sentiu vergonha e uma culpa paralisante. Mas que isso não ajuda. “Temos que trocar as palavras culpa e vergonha por responsabilidade e tentar aprender como podemos colocar em prática o que aprendemos sobre o passado, o presente e o futuro, e como podemos agir como indivíduos - mesmo que não tenhamos cometido crimes. Então, precisamos deixar a ideia de culpa e ir na direção da aceitação. Temos que assumir a responsabilidade agora.”
Nora é autora ainda da graphic novel Sobre a Tirania, adaptação da obra de Timothy Snyder, lançado recentemente.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.