Na entrada do apartamento do bairro do Paraíso, em São Paulo, sobre a estante, vemos fotos da família de dona Vicência. No meio desses retratos coloridos de filhos e netos, há uma foto em preto e branco que destoa um pouco – uma imagem muito bonita, e bem conhecida, de Cora Coralina (1889-1985). Acima, alguns objetos de decoração que pertenceram à poeta goiana. Na mesinha de centro, uma das panelas de barro que ela usava para cozinhar em seu lendário fogão a lenha virou vaso para uma renda portuguesa. E, no caminho para os quartos, uma galeria com fotos da escritora – a mais antiga, tirada por volta de 1910; a mais nova, de abril de 1985, feita dois dias antes de ela morrer em decorrência de uma pneumonia.
Vicência Brêtas Tahan é possivelmente a fã número um de Cora Coralina, e guardiã de seus escritos. Única filha viva da poeta e doceira que estreou na literatura aos 75 anos, ficou conhecida do grande público aos 90, e cuja popularidade só aumenta com o passar dos anos, ela está animada com a proximidade das comemorações pelos 130 anos do nascimento de sua mãe, que vai movimentar, na terça-feira, 20, a histórica Cidade de Goiás, onde Cora nasceu e morreu.
Antes de embarcar para lá, Vicência recebeu o Estado em sua casa, e falou com carinho sobre as lembranças que guarda da mãe, as lições aprendidas, a saudade – e mostrou a estante dos inéditos. E essa é a notícia boa para os leitores de Cora: há material (poemas, contos, cartas e discursos), ela diz, para mais cinco ou seis livros.
Isso, sem contar os três que estão no prelo da editora Global. Dois deles – uma seleção de poemas para jovens e o infantil Lembranças de Aninha, com 12 textos já publicados – estão previstos para 2020. E um novo lote de inéditos chegou recentemente à editora, que está no processo de seleção.
Cora Coralina só publicou três livros em vida – Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965), Meu Livro de Cordel (1976) e Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha (1983). Hoje, são encontrados 16 títulos nas livrarias, incluindo um livro de receita e 8 para crianças.
“Minha mãe começou a escrever muito cedo, aos 14 anos, mas naquele tempo ninguém dava valor à escrita da mulher. E ela foi guardando, guardando. Depois, se casou e meu pai era daquela geração bem machista: não deixava ela mostrar os poemas que escrevia, e ela continuou guardando. Até que, aos 75 anos, já viúva, com os filhos criados e casados, ela voltou a se interessar por publicar e conseguiu”, conta Vicência.
Tudo bem que, entre os 14 e os 75, a vida foi movimentada e cheia de mudanças e batalhas – e a escrita pode ter ficado em segundo plano enquanto, viúva, ela criava os filhos, vendia tecido, administrava uma pensão, cuidava da roça ou fazia doces. Mesmo assim, e também porque a volta definitiva à cidade natal em 1956 reavivou nela o desejo de escrever e porque lá havia mais tempo, há naquele apartamento do Paraíso cerca de 15 pastas azuis que guardam manuscritos e datiloscritos de Cora, nascida Anna Lins dos Guimarães Brêtas. Material que Vicência vem organizando desde que a mãe morreu, há 34 anos, e que ainda precisa de um olhar editorial e crítico.
Filha raspa de tacho, como ela brinca, Vivência, que perdeu o pai aos 3, acompanhou a mãe em suas últimas andanças pelo estado. De Jaboticabal para São Paulo, Penápolis e, por fim, Andradina. Sabe das vantagens de ser caçula – Cora tinha mais tempo e até lia para ela alguma coisa que estava escrevendo para algum jornal local. Mas histórias, mesmo, só os netos ganharam – e delas nasceram alguns de seus livros infantis. “Não, não tinha isso de ela contar historinha. Ela estava trabalhando, cuidando da loja para sustentar a mim e a ela”, comenta.
Se Cora foi uma mãe carinhosa? “Médio”, responde Vicência. “No tempo dela, não era costume ficar acarinhando, abraçando filho, beijando. A gente tinha que tomar bênção para dormir e quando levantava. Não era de achego. Ela viveu o tempo dela e criou os filhos de acordo com esse tempo”, completa.
E a poeta dos versos simples que encanta tantos leitores foi uma mãe exigente. “Ela nunca aceitou que a gente ficasse em cima do muro. Com ela, era assim: ou você toma partido ou fica de boca fechada. E, quando tomar partido, fique firme até ser convencido a mudar de opinião. Mas ela nunca aceitou que alguém falasse ‘não sei’, ‘quem sabe’. A gente tinha que saber.”
As principais lições ensinadas, além de não ficar em cima do muro, ela diz que foram: saber quem somos e o que fazemos e sermos positivos.
Uma lembrança marcante, que serviu também como lição, é a de Cora lendo jornal e livros. “É muito importante estar em dia com os acontecimentos. A leitura é uma base extraordinária para a gente, para a convivência, para a prosa, para o conhecimento mesmo. Quem não lê está perdido, ainda mais hoje em dia, quando as coisas acontecem de uma hora para outra. Meu Deus, como está o mundo, não? E, se não estamos em dia, somos postos de lado.”
A saudade é grande: da conversa, do espírito, da comida feita com banha na panela de barro, da linguiça que ela deixava no fumeiro, dos doces. Cuidar da obra de Cora diminui um pouco a distância entre a filha coruja, autora da biografia romanceada Cora Coragem, Cora Poesia, e a mãe famosa. “Sou filha coruja. A gente tem que valorizar o antepassado. E ela não foi uma mulher qualquer. Tinha muita personalidade, muita presença. Tenho muito orgulho e quero sempre parecer mais com ela nesse ponto”, finaliza.
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