Nos contos de 'O Ovo do Barba-Azul', Margaret Atwood reflete sobre relações amorosas

Escritora rebate críticas sobre cenas fortes que marcam os seus romances

PUBLICIDADE

Foto do author Ubiratan Brasil

Quando lançou, em 1987, o livro de contos O Ovo do Barba-Azul, a escritora canadense Margaret Atwood foi insistentemente questionada sobre o uso de estratégias pós-modernas para explorar a relação entre o corpo e o texto literário. “Eu me lembro dessas observações e não entendia nada. Na verdade, continuo não entendendo”, brinca a autora, em conversa por telefone com o Estado. “Era para ser um romance, mas acabou ficando apenas um conto.”

PUBLICIDADE

Ela se refere à história que inspira o título da obra, publicada agora pela Rocco, editora que lança todos os livros de Margaret no Brasil e que promove uma boa política de redução de preço em abril, oferecendo 17 volumes da escritora canadense (e também de outros autores) com belos descontos.

O Ovo do Barba-Azul é o mais interessante dos contos. Mostra a paixão de Sally pelo cardiologista Ed, que não revela tanto apreço pela moça – mais por sua apatia que por desinteresse. Certo dia, ela é desafiada a escolher um personagem da lenda do Barba-Azul para contar a história pelo seu ponto de vista. E ela escolhe o ovo. Aparentemente passivo, o ovo, no entanto, era a causa de todas as desgraças que aconteciam no conto folclórico, no qual um bruxo sequestrava mulheres e as testava para ver se mereciam casar com ele.

Em Londres. Para autora, livro tem que ensinar e entreter Foto: Stefan Wermuth|Reuters

“Ouvi a história durante uma viagem de trem com meu editor e achei fascinante. Logo pensei em estruturar um romance, mas não consegui”, conta Margaret, que foi capaz, mesmo assim, de montar uma seleção de tramas que exploram a difícil relação entre homem e mulher diante de questões como amor, sexo, família, infidelidade e morte.

Publicidade

Assim, em Loulou, ou A Vida Doméstica da Linguagem, o leitor acompanha as agruras de uma oleira, obrigada a conviver com homens poetas com quem ela já se relacionou, seja como marido ou como amante, e nenhum deles parece respeitá-la por mais que ela se esforce em cuidar deles. Já O Canto Primaveril das Rãs mostra o inexperiente Will e sua estranha habilidade em revelar o perfil anoréxico que vive nas mulheres com quem se relaciona, incluindo uma sobrinha que está hospitalizada.

Aos 76 anos, Margaret Atwood ganhou fama justamente por criar histórias em que os personagens buscam suas verdades pessoais, entremeando passado e presente. Em muitos casos, foi até chamada de visionária, por descrever fatos que, em seguida, se tornavam realidade. “Não escrevo livros esperando que as situações aconteçam. Escrevo porque sei que podem acontecer e, em alguns casos, esperando que não”, conta ela. Sua voz é baixa, cadenciada e sem vacilos, capaz de surpreender com comentários breves e espirituosos.

Prêmio. Com O Assassino Cego, Margaret ganhou o Man Booker Prize de 2000, o mais prestigioso prêmio literário em língua inglesa. Trata-se de um romance sobre outro romance, texto metalinguístico de grande potencial narrativo, envolvendo uma escritora, sua imaginação e um acidente de carro. Questionada sobre a incidência relativamente grande de violência em sua obra, Margaret não pestaneja: “Violência é o próprio ato de viver. Assim, não consigo escrever qualquer história sem ter esse ponto de partida”, afirma. “Violência é algo inerente à literatura e está no trabalho de outras mulheres como Jane Austen e George Eliot.”

A escritora canadense gosta de apresentar um exemplo para comprovar como o uso da violência pode resultar em grandes obras. “Drácula, de Bram Stoker, é perfeito para mostrar isso. No início da leitura, se deixarmos de lado todas as imagens já apresentadas pelo cinema, descobrimos um personagem normal, Jonathan Harker, que vai entrar em contato com um tipo específico de violência ao conhecer o conde Drácula”, conta. “A força do romance está no confronto entre um homem pacífico e outro perigoso. E surge aí uma grande literatura.”

Publicidade

Um assunto que muito agrada Margaret Atwood é o papel do romance além do entretenimento. Ela comunga com os romancistas vitorianos, que não viam a ficção simplesmente como um veículo para expressar opiniões pessoais, mas como uma proposta para exame social. “É um debate clássico, que remete aos gregos”, observa. Podemos entender a literatura como instrução, mas não pode ser apenas isso – o entretenimento é também um componente essencial, pois, por meio dele, é mais fácil se chegar à instrução. Por isso que tento sempre unir os dois em meus livros.”

Ainda que boa parte de seu trabalho tenha mulheres como protagonistas, Margaret já experimentou narradores masculinos. Mas ela não gosta de fazer distinção. “Ainda que determinados pensamentos e atitudes sejam mais comuns em homens e outros, em mulheres, não vejo diferença alguma. Quando me decidi por um protagonista masculino foi unicamente motivada pela história, que poderia ser diferente caso o principal personagem fosse uma mulher.”O OVO DO BARBA-AZULAutora: Margaret AtwoodTradução: Carlos RamiresEditora: Rocco (288 págs.,R$ 39,50)Novos projetos incluem uma graphic novel

Margaret Atwood não se prende ao seu tempo - gosta de modernidades e de pensar no futuro. Foi o que a convenceu a aceitar, por exemplo, o convite da artista escocesa Katie Peterson, criadora do projeto Biblioteca do Futuro. A cada ano, um autor será convidado para escrever um livro de ficção para esse projeto, que só ficará completo em 2114. Até lá, nenhuma das obras será lida: todos os manuscritos ficarão guardados em uma sala especial da Biblioteca Deichman, em Oslo, na Noruega, sob proteção de uma comissão especial. 

PUBLICIDADE

Quando a Biblioteca do Futuro somar suas 100 obras, todos os livros serão impressos, e finalmente o mundo conhecerá o trabalho inédito dos autores convidados. “Fiquei emocionada com o fato de poder me comunicar através do tempo, o que, na verdade, é um dos méritos dos livros”, disse Margaret, a primeira escritora a ser convidada. Por contrato, ela não pode revelar nada do que escreveu nem mesmo se foi ficção, poema ou análise. “Pode até ser um ‘oi, tem alguém aí?’”, diverte-se ela, que trabalha agora em uma revisitação da peça A Tempestade, de Shakespeare.

“Vai se chamar Hag-Seed e é um bom motivo para eu tratar da minha peça favorita de Shakespeare”, conta ela, que transformou a trama, agora com um diretor de teatro, Felix, que é expulso do comando de um festival. A chance de revanche surge quando ele passa a ensinar técnicas de teatro em uma prisão. Margaret também escreveu a história da graphic novel Angel Catbird, com desenhos de Johnnie Christmas. Para se ter uma ideia, o herói tem pele e penas.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.