'Nossa compreensão de como a sociedade opera mudou com a pandemia', diz N.K. Jemisin

Autora premiada lança novo romance, agora no registro da fantasia urbana, e fala sobre como a gentrificação é uma ameaça ao espírito das cidades

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N.K. Jemisin é talvez o mais relevante nome da literatura fantástica hoje. Após conseguir a façanha – inédita até entre autores do porte de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke – de vencer por três anos seguidos o principal prêmio do gênero, o Hugo, na categoria de melhor romance, com sua trilogia A Terra Partida, a escritora norte-americana retorna com Nós Somos a Cidade (Suma), primeiro volume de sua nova saga, que já está na disputa pela estatueta do Hugo novamente em 2021.

A escritora norte-americana N. K. Jemisin Foto: Laura Hanifin/Suma

No entanto, Nós Somos a Cidade é bem diferente de A Terra Partida. A trilogia anterior, lançada no Brasil pela Morro Branco, tinha ares mais épicos, se passava durante uma catástrofe climática em um mundo com pessoas dotadas de poderes de manipulação de elementos (os orogenes), e contava com reviravoltas interessantes do ponto de vista narrativo, relacionadas à cronologia. Já o novo livro tem uma trama contemporânea, linguagem coloquial e é uma fantasia urbana, bem menos ambiciosa em escopo. Um fator, entretanto, une as duas obras: o enfoque na discriminação. Enquanto os orogenes eram temidos e odiados pelas pessoas comuns da sociedade colapsada de A Terra Partida, Nós Somos a Cidade tem como protagonistas personagens que incorporam suas próprias sociedades de uma maneira muito literal, mas que acabam sofrendo preconceitos de toda sorte. No novo romance de Jemisin, quando cidades grandes como Paris, Londres e Lagos crescem a um certo ponto, elas se tornam vulneráveis ao ataque de seres extradimensionais, criaturas com um quê de lovecraftianas – mas que se manifestam em situações bastante corriqueiras, como na violência policial, na especulação imobiliária ou no trânsito. Para impedir essas ameaças, pessoas comuns são escolhidas para encarnar as cidades e impedir que elas morram – novamente, num sentido bastante literal. Na obra, Nova York está passando por essa transição e recebe ajuda de outras cidades – como São Paulo, que age como um mentor. “Fiquei em dúvida entre representar São Paulo, que é maior, ou o Rio de Janeiro, que tem mais reputação internacional, mas me decidi por São Paulo porque senti que era uma cidade pronta para ganhar vida própria”, conta Jemisin em entrevista ao Estadão por videoconferência.  Em uma entrevista anterior ao Estadão, no fim de 2019, antes de o livro ser publicado nos Estados Unidos, a autora contou que gostaria de ter vindo ao Brasil para fazer a caracterização de São Paulo, mas teve receio: “Minha preocupação era ouvir histórias de artistas conhecidos meus, críticos da gestão Trump, tendo problemas para entrar e sair das fronteiras. Não parecia uma boa hora para viajar para fora do meu país, muito menos para um país com um cenário político semelhante”, explicou a autora. Por isso, Jemisin contou com a ajuda de amigos brasileiros para construir o personagem de São Paulo, mas ela ainda espera vir pessoalmente a fim de “sentir” a cidade. “Todos os lugares têm uma personalidade. Qualquer um que viaja um pouco percebe isso”, diz ela, que nasceu em Iowa City, no Iowa, e cresceu em Mobile, no Alabama, mas se sente em casa em Nova York – como Manny, o protagonista que imigra para a Big Apple e se torna a personificação de Manhattan. Tanto Nós Somos a Cidade quanto a trilogia A Terra Partida exploram contextos pré ou pós-apocalípticos, lidando com ciclos de destruição e recriação. “Eu sempre fui fascinada pela transformação. Sou fascinada por períodos em que grupos que antes eram inimigos ou não aliados se unem e aprendem a cooperar, tendo que lidar com preconceitos existentes, lidar uns com os outros o suficiente para enfrentar um problema maior, que coloca seus mundos, com tudo o que eles conhecem e amam, em risco”, afirma a escritora. “É nesses momentos que se vê o lado mais verdadeiro das pessoas. Quando elas estão sob ameaça, isso desperta seu pior e seu melhor”. Como uma autora de fantasia, ainda mais uma que lida com cenários catastróficos, Jemisin aprendeu bastante com a pandemia para sua própria ficção. “Eu supunha que os seres humanos eram muito mais sensatos do que eles são. Eu achava que as pessoas se vacinariam para se salvar, ou ao menos para proteger seus amigos e suas famílias. Ou fazer coisas simples como usar máscaras. É algo tão pequeno que, se nos ajuda a mitigar a pandemia, é simples de pedir que se faça. Mas ficou bastante claro para mim que há literalmente pessoas que preferem morrer a fazer algo benéfico aos que estão ao redor.” Por mais que se considere – e seja considerada por uma série de críticos e leitores – uma pessoa pessimista, Jemisin afirma não ter sido pessimista o suficiente. “Jamais poderíamos imaginar cenários como o que estamos vivendo (em uma obra de ficção), porque as pessoas diriam que não é realista”, acredita ela. Por isso, ela diz que os leitores devem esperar mais personagens egoístas e com comportamentos danosos aos demais na literatura nos próximos anos. “Nossa compreensão de como a sociedade opera mudou como resultado da pandemia.” Jemisin, porém, não acredita em uma onda de ficção distópica, até porque isso já vinha ocorrendo nos últimos anos, e sim em um boom de novas utopias. “Vejo mais pessoas interessadas em explorar formas de superar o que vivemos, de consertar o que está acontecendo.” Embora seu novo livro tenha influências de H.P. Lovecraft, a autora confessa que não se interessava tanto pela obra dele até poucos anos atrás. Foi depois que a escritora Nnedi Okorafor venceu o World Fantasy Award em 2011 e externou desconforto ao ganhar um prêmio cuja estatueta era a cabeça de Lovecraft – alguém que odiava pessoas negras como ela – que o universo da literatura fantástica passou a debater com mais afinco as posições abertamente racistas e reacionárias do autor de O Chamado de Cthulhu. “É por isso que hoje se vê várias obras anti-lovecraftianas”, explica Jemisin. Além dela, autores como Matt Ruff (Território Lovecraft) e Victor Lavalle (A Balada do Black Tom) vêm ressignificando o horror cósmico para explorar temas antirracistas, valorizando o inegável legado literário de Lovecraft sem esconder suas tendências problemáticas. Nós Somos a Cidade é mais uma obra nessa toada ao usar uma aura lovecraftiana para seus vilões, com direito a tentáculos e presenças ominosas pela cidade de Nova York. “Ele se sentia como eu sobre as cidades. Ele sentia que Nova York tinha uma personalidade. Mas ele a odiava. Ele percebia a energia vital da cidade, as formas como ela podia mudar uma pessoa, e ele isso o apavorava. Enquanto eu tento sugar ao máximo essa energia, ela é maravilhosa para mim.” O verdadeiro caráter lovecraftiano do livro, entretanto, não está em inimigos grotescos. “Os personagens verdadeiramente monstruosos para mim são as pessoas que dão espaço a essas monstruosidades.” As entidades que assolam as metrópoles na trama sempre precisam de algum agente físico para se manifestar, e é aí que entram situações mais mundanas que são representadas como grandes ameaças existenciais na obra. “É porque eu vejo esses problemas urbanos como ameaças existenciais”, diz Jemisin. “Há uma tentativa de homogeneizar as cidades que alimenta a violência policial, a especulação imobiliária e todas essas coisas representadas no livro. Há uma tentativa de impedir a cidade de ser eclética e boêmia, com muitos tipos de pessoas, e reduzir essa complexidade e diversidade a algo mais raso e menos interessante. Vejo isso como uma ameaça à alma de Nova York.”

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