“Imagina ouvir a letra de uma canção que nos faz acreditar que o cantor está, subitamente, revelando uma verdade?”, indaga Bob Dylan em sua análise da canção Detroit City (1966), do cantor country Bobby Bare. Um comentário sacana que, vindo do maior compositor da história da música popular, provoca o leitor logo nas primeiras páginas de A Filosofia da Música Moderna, publicado originalmente em 2022 e com lançamento previsto no Brasil para 24 de novembro, pela Companhia das Letras.
Trata-se do terceiro livro escrito pelo lendário músico de 81 anos, após a ficção experimental Tarântula (1971) e o ótimo Crônicas: Volume Um (2004), uma coleção de memórias. Dessa vez, o vencedor do Prêmio Nobel da Literatura investiga a filosofia de 66 músicas através de ensaios despretensiosos e reveladores. E a menos que você seja uma enciclopédia musical, como o autor, é fundamental escutar cada tema antes ou depois de ler o respectivo trecho analisado.
Como era de se esperar, ali estão reunidas gravações de gigantes da indústria americana: Johnny Cash, Nina Simone, Sinatra, Willie Nelson, Ray Charles, Elvis, entre outros. A canção mais antiga da seleção (e mais triste, segundo Dylan) – Nelly Was a Lady, de Stephen Foster – data de 1849, enquanto a mais recente foi lançada em 2003: Dirty Life and Times, de Warren Zevon.
No entanto, há também escolhas que fogem do óbvio. Dentre a “Santíssima Trindade” do rock inglês, os Beatles e os Rolling Stones são preteridos pelo The Who, cujo sucesso My Generation (1966) imortalizou o verso “I hope I die before I get old” (espero morrer antes de ficar velho). “Ele [Pete Townshend, compositor] espera morrer antes de envelhecer e ser substituído, assim como ele está substituindo outras pessoas. (...) Esse medo talvez seja a coisa mais honesta dessa canção. Todos nós reclamamos da geração anterior, mas sabemos que é só uma questão de tempo até nos tornarmos as pessoas que nos antecederam”, analisa o trovador.
A presença de Poor Little Fool (1958), de Ricky Nelson, também é um tanto curiosa, mas não chega a surpreender, haja vista que Dylan já tinha externado sua admiração por Nelson em Crônicas, quando se comparou ao cantor, um dos primeiros ídolos teens e que foi vaiado no palco por mudar sua direção musical – o mesmo acontecera com Bob, em 1965, ao ser defenestrado por fãs radicais e revoltados com sua famosa transição do folk para o rock – “Vale inclusive discutir se Ricky, até mais que Elvis, teria sido o verdadeiro embaixador do rock ‘n’ roll”, propõe o criador de Like a Rolling Stone, possivelmente a mais icônica canção da história deste gênero.
Ressignificados, pitacos e “multidões”
Não por acaso, a grande façanha de Dylan é mergulhar ao cerne de cada letra e expandi-la de tal maneira que a mensagem original, muitas vezes, parece ser completamente ressignificada. “O que importa é como uma canção faz o ouvinte se sentir em relação à própria vida”, explica o bardo, que costuma pincelar cada capítulo com breves informações sobre o elegido artista, tecendo comentários deliciosos.
Ao destrinchar Pump It Up (1978), por exemplo, ele afirma que Elvis Costello & The Attractions foi “a melhor banda entre suas contemporâneas, anos-luz melhor”, reconhecendo ainda uma clara influência de sua obra no cantor britânico. “É óbvio que ele estava ouvindo muito Bruce Springsteen quando compôs Pump It Up. Também tivera uma boa dose de Subterranean Homesick Blues”, citando o clássico presente no álbum Bringing It All Back Home (1965).
O livro é projetado como uma espécie de revista, que pode ser consultada de forma não linear, contendo belas ilustrações e fotografias. Muitas delas, porém, são posicionadas sem uma explicação clara, instigando interpretações ou conhecimento prévio. Logo, alguns leitores podem não entender um enorme retrato de Carmen Miranda antes dos pitacos “dylanescos” a respeito do hino do rock Tutti Frutti (1957), de Little Richard. Apenas os mais atentos, contudo, vão notar que se trata de uma referência à canção The Lady In The Tutti-Frutti Hat, eternizada na voz da icônica cantora luso-brasileira.
As referências e homenagens a diversas personalidades, por sinal, transbordam nesta obra, assim como no álbum mais recente de Dylan, Rough And Rowdy Ways (2022) – ambas são plataformas para o poeta rebelde conjurar as “multidões” que habitam dentro de si, conforme ele anuncia na canção I Contain Multitudes, presente no referido disco.
A Filosofia da Música Moderna, um livro essencial para qualquer fã de música pop, clama por uma sequência. Não importa que sejam 66 ou 666 canções. Por mais que seja impossível decifrá-las, é possível compreendê-las sob o prisma do alquimista de Minnesota. “Algo de inexplicável acontece quando palavras são postas em uma música. O milagre está nessa união”, escreve aquele ser mutável que nunca está lá, mas está sempre pronto para as simples reviravoltas do destino. “A música, como toda arte, incluindo a arte do romance, repetidas vezes nos ensina que um mais um, no melhor dos casos, é três” – e quem irá discordar?
A Filosofia da Música Moderna
- Editora: Companhia das Letras
- Autor: Bob Dylan
- Tradução: Bruna Beber e Julia Debasse
- 352 páginas; R$ 249,00
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