Novo livro de Itamar Vieira Junior, ‘Salvar o Fogo’ retoma relação do escritor com a terra

Após sucesso de ‘Torto Arado’ (700 mil exemplares vendidos), autor volta ao interior da Bahia para ambientar sua nova obra

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Foto do author Ubiratan Brasil

Era manhã em Tóquio, no Japão, quando o escritor Itamar Vieira Junior conversou por Zoom com o Estadão, que ainda vivia a noite do dia anterior. “Estou aproveitando bem a culinária local”, disse ele, sorrindo. Aos 43 anos, o autor baiano percorreu cinco cidades japonesas para lançar a tradução de Torto Arado, seu primeiro romance que, lançado em 2019, o elevou à rara condição de best-seller no mercado brasileiro, com 700 mil exemplares já vendidos e lançamento em 25 países. O sucesso não o intimidou e Itamar lança, na segunda, 24, Salvar o Fogo, também sob a chancela da editora Todavia.

O livro chega em meio a uma grande expectativa, com uma pré-venda de 37 mil exemplares. Algo que não assombra seu autor. “Estabeleci um limite: Torto Arado é agora dos leitores, não mais meu. Cuido agora de Salvar o Fogo”, disse ele, que tinha previsão de chegar ao Brasil nesta sexta, 21. As duas obras, porém, têm o mesmo cordão umbilical, pois Itamar, quando escrevia Torto Arado, em 2017, sentiu a necessidade de desdobrar a trama. “Percebi que precisava falar de forma mais abrangente sobre a história de pais, o que renderia outro livro.”

Para Itamar, mais que uma arte, a literatura é uma energia, uma ferramenta para mudar o mundo. Foto: Renato Parada

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Como o êxito de Torto Arado sobrecarregou sua agenda, com a exigência de sua presença em lançamentos e debates, Itamar deixou o novo livro em repouso. Outro adiamento veio por causa da pandemia (“Não conseguia escrever enquanto pessoas morriam, só foi possível quando veio a vacina”) até finalmente iniciar a escrita, que consumiu um ano e oito meses de trabalho. O resultado é um livro com uma voz bela e devastadora.

Salvar o Fogo é ambientado em um povoado rural conhecido como Tapera do Paraguaçu, às margens do Rio Paraguaçu, no interior da Bahia. Lá, o jovem Moisés vive com o pai, Mundinho, e a irmã Luzia. Órfão de mãe e filho temporão, o rapaz busca desesperadamente um mínimo afeto de Luzia, que logo se transforma na principal personagem do romance. Estigmatizada pela população local por seus supostos poderes sobrenaturais, suspeita agravada pelo surgimento inexplicável de uma corcunda, ela se torna lavadeira de um mosteiro, o que garante ao menino a formação que os irmãos mais velhos nunca tiveram.

Mulheres

“A convivência com Luzia foi muito forte”, relembra Itamar. “A imagem dela evocava muita força e foi inspirada em muitas mulheres da minha família, como avós, minha mãe e especialmente uma tia, Belita, que, como Luzia, tinha uma corcunda e lavava roupa para a igreja.” Com habilidade, o escritor traz, na trajetória íntima de sua personagem, traços da vida brasileira. Em muitos momentos, são traumas do colonialismo, que permanecem vivos, como uma ferida que se mantém aberta. Para Itamar, mais que uma arte, a literatura é uma energia, uma ferramenta para mudar o mundo.

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Estilisticamente, ele buscou o desafio de alternar a voz do narrador, o que confere, além de outro ponto de vista, uma prosódia ligeiramente diferente. A história começa sob o olhar de Moisés, até passar para Luzia e terminar com a irmã mais nova, Mariinha. “Meus personagens são confiáveis, o que permite ao leitor receber uma percepção mais próxima da realidade”, conta o escritor, cuja opção pela multiplicidade de narradores é inspirada na obra de William Faulkner, especialmente em O Som e a Fúria.

Já o título é uma metáfora para a vida. “O fogo nos incendeia, nos mantém vivos e encoraja os personagens”, explica Itamar, que fará uma série de encontros com leitores pelo Brasil para lançar Salvar o Fogo. Em São Paulo, será no dia 4 de maio, no Centro Cultural São Paulo, às 19h, quando, além dos autógrafos, haverá participação da cantora e compositora Luedji Luna.

Capa do livro Salvar o Fogo, de Itamar Vieira Junior. Foto: Editora Todavia

Trecho:

A vingança tupinambá

A ira do corpo se torna mais violenta em noite de lua cheia.

Ela já não conseguia se recordar das coisas que tinha para fazer no dia a dia. Também não soube dizer a si mesma como e quando havia se deitado exausta na esteira de palha e nem em que momento desfez - num acesso de fúria - a grossa trança que domava seu cabelo crespo e negro refletindo o brilho da luz de um candeeiro. Depois ela imaginou que os fios do seu cabelo se tornavam raízes encontrando o chão do quarto, e talvez tudo isso tenha se passado antes de uma dor violenta lhe atravessar o quadril (...) Ou um pouco antes de o suor escorrer de seu rosto e de suas costas como uma fonte de água morna. Foi ao mesmo tempo em que sentiu uma incômoda vontade de urinar.

Enquanto estava deitada deixou a mão repousada sobre o ventre de seu pequeno corpo. Ali, sabia, estava a causa de sua aflição, a vida se contorcendo com violência, e era como se ela própria fosse arrebentar com a força que se digladiava para deixá-la. Poderia ficar quieta e permitir que seu corpo seguisse o próprio fluxo como o rio, porque tinha visto as mulheres fazerem o mesmo à sua volta. Poderia pedir ajuda e mandar alguém chamar a parteira da Tapera do Paraguaçu, aquela mulher que cheirava a aguardente e tinha as unhas grandes e sujas. Mas preferiu seguir em silêncio.

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