O escritor português Valter Hugo Mãe preparava-se para atravessar a Avenida Paulista, na tarde de sexta-feira, 1º, quando um adesivo fixado em um poste chamou sua atenção. “Vote em mulher indígena”, dizia. O autor retirou o autocolante e o grudou em seu caderno de anotações. Os povos que habitavam o Brasil antes da chegada dos colonizadores ainda o atraem, especialmente depois de publicar As Doenças do Brasil (Biblioteca Azul), livro que é tema de conversas e palestras da Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
Hugo Mãe é um dos principais convidados do evento, que vai até domingo, 10, e homenageia Portugal. A relação histórica entre os dois países inspirou o livro, um dos mais importantes do escritor e que trata de um tema delicado: o genocídio dos indígenas promovido pelo povo europeu. “Acredita-se que, em 1500, deveriam viver aqui cerca de oito milhões de pessoas originárias e, 300 anos depois, já próximo da Independência do Brasil, não passavam de dois milhões”, observa ele que, a convite do Estadão, passeou pela região da Paulista.
Com o título inspirado em Padre António Vieira (1608-1697), outro português também que lançou um olhar crítico sobre o País, As Doenças do Brasil coloca a pessoa indígena no centro da narrativa, ao contar sob sua ótica percepções sobre a invasão e o processo de extermínio. Para isso, Hugo Mãe criou uma terra imaginária, inspirada nas narrativas dos povos originários. “Não é antropologia, mas uma tentativa de criar uma ideia de justiça em torno das grandes perdas dos oprimidos.”
Poesia
Foi seu romance que exigiu mais trabalho, seja na escolha da linguagem, seja no enfrentamento de questões éticas sobre a legitimidade para tratar desse universo. “Um dos meus dilemas era escolher a forma da escrita, que não podia ser o meu português tampouco um brasileiro mimetizado. Busquei, então, criar uma estranheza dentro da língua que pudesse despertar no leitor a impressão de entrar em um território estrangeiro. É um romance que utiliza a estratégia da poesia.”
Tal decisão revelou-se acertada tanto para carregar de lirismo a narrativa como para justificar a escolha de um assunto espinhoso, algo que somente estrangeiros apaixonados pelo Brasil têm a possibilidade de abraçar. “Para os europeus – e os portugueses em particular –, o extermínio de indígenas é um passado que hoje mora em bibliotecas e museus. Com o livro, busco suscitar o interesse por uma realidade que parece desconhecida ou não aceita.”
Hugo Mãe passeou pela Paulista, na região do Masp. Observou o movimento intenso na avenida, além da quantidade de pessoas em situação de rua. De alguma forma, são detalhes que inspiram seu trabalho. “Procuro vir sempre ao Brasil, pois esse contato fertiliza meu processo de criação, que é instigado de alguma forma pelas viagens – sempre espio muito”, afirma. “E tenho notado que o brasileiro não é mais aquele sujeito esperto, que não se deixa enganar. Agora, com o surgimento desse ódio, com o vizinho sendo um inimigo, acho que alguém enganou os brasileiros de uma forma que jamais pensei acontecer.”
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