Roman Krznaric está preocupado com o futuro. Após publicar o best-seller Como Ser um Bom Ancestral, um dos mais importantes filósofos da atualidade retoma a discussão no livro História para o Amanhã, com lançamento em 9 de dezembro, no qual busca inspirações do passado para investigar dez grandes desafios globais do século 21, como a dependência de combustíveis fósseis, o controle das redes sociais, a desigualdade e a fé na democracia.
Pela terceira vez no Brasil para uma turnê de palestras, o australiano de 54 anos, radicado no Reino Unido, recebeu o Estadão na unidade brasileira da The School Of Life, em São Paulo. A empresa fundada por Alain de Botton com um grupo de acadêmicos e intelectuais, entre os quais Krznaric, tem o objetivo, basicamente, de ministrar cursos para desenvolver as habilidades emocionais de seus colaboradores.
Nesta entrevista, o pensador alertou para os perigos da IA e da crise ecológica. Crítico do capitalismo e da esquerda moderna, ele também defendeu novos modelos econômicos e valorizou a organização de movimentos disruptivos para mudanças urgentes, citando as ‘Diretas Já' como exemplo bem-sucedido.
Acredita que o rótulo de filósofo é adequado para o senhor? Como se define?
Eu realmente não me considero um filósofo. Quer dizer, se você olhar o meu site, está escrito ‘filósofo social’. Eu inventei isso porque penso que a ideia tradicional do filósofo é perguntar: “como eu deveria viver?”. E me chamo de filósofo social porque estou interessado na questão de como nós deveríamos viver. Mas por formação acadêmica, sou um cientista político. Não me interesso muito pelas fronteiras disciplinares. Se eu precisar ler sobre o cérebro humano, vou ler um jornal de neurociência. Se eu precisar estudar história, vou olhar para a antropologia. Mas talvez isso seja o que um filósofo faz, em um sentido de que, no fim das contas, o que me interessa é a crença de que as ideias podem moldar a sociedade.
Por que a humanidade precisa olhar para o passado a fim de se mover em direção ao futuro?
A história é um dos nossos recursos mais subvalorizados para pensar no futuro da humanidade. Nossos políticos e empresários estão presos na tirania do agora. Eles estão respondendo à próxima eleição, ao próximo relatório trimestral ou esperando que novas tecnologias resolvam nossos problemas. O que está faltando é esse reconhecimento de que você não dirigiria um carro sem olhar no espelho retrovisor, não é? Então eu escrevi este livro para tentar acessar essa sabedoria para nos ajudar a resolver problemas globais.
No livro, o senhor diz que os Homo sapiens são animais com capacidade extraordinária de cooperação. Por que então nos tornamos tão individualistas?
É verdade que somos altamente cooperativos. Você pode encontrar tantos exemplos extraordinários ao longo da história. Nas últimas semanas, tenho pensado muito sobre a cidade espanhola de Valência. Eles têm essa incrível instituição legal chamada Tribunal das Águas. Toda quinta-feira, ao meio-dia, do lado de fora da catedral, oito figuras encapuzadas de preto saem. E eles foram eleitos democraticamente pelos agricultores para gerenciar os recursos hídricos escassos da área agrícola ao redor de onde eles cultivam frutas. Então, se houve um agricultor que pegou muita água além das regras, ele pode receber uma multa ou penalidade. É um exemplo de como temos uma capacidade cooperativa de gerenciar nossos recursos. Então, acho que há duas respostas para sua pergunta. Uma são os impactos do neoliberalismo, um hiper individualismo do pensamento capitalista pós-2ª Guerra. E a outra é a indústria de autoajuda, onde há foco excessivo em como eu deveria viver e não o suficiente em como nós deveríamos viver.
A crise da água será um dos maiores dramas da sociedade no futuro próximo?
Sim, acho que ‘drama’ é a palavra certa. A água é uma das necessidades absolutas. Precisamos pensar e agir a respeito desse tipo de crise. Então, o que fazemos? As pessoas esperam que talvez as tecnologias venham nos salvar, como a dessalinização. Mas no momento, são muito caras. Talvez a tecnologia ajude, mas talvez vamos ter que aprender a gerenciar esses recursos. Eu não deveria estar te contando isso, mas estou escrevendo um romance sobre a crise global da água no futuro, tipo ficção científica. É um assunto muito importante.
Em tempos de inteligência artificial, o senhor teme um mundo onde tudo será falso?
Quando se trata de IA, a primeira distinção a fazer é entre o que é chamado de IGA, inteligência geral artificial, a ideia de máquinas pensantes, como no Exterminador do Futuro ou Matrix, que poderiam matar seres humanos, e o outro tipo de IA, chamado de IA estreita, que são os algoritmos que tentam nos vender coisas pequenas na internet. Acho que o primeiro tipo, AGI, é uma espécie de distração dos perigos reais da IA cotidiana. O grande perigo com esse tipo de IA tem a ver com essa ideia de que não seremos capazes de confiar nas informações básicas. Já vemos isso na política, como na recente eleição nos EUA, em pesquisas de opinião falsas. Os níveis de confiança social e confiança nas instituições econômicas vão desaparecer nos próximos anos, a menos que tentemos fazer algo a respeito. O colapso da realidade é o que mais me preocupa.
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No livro, o senhor menciona Bolsonaro, que agora está sendo acusado de tramar um golpe contra seus rivais. Políticos de direita são uma ameaça real à democracia?
Sim, claro! Porque a história dos políticos de extrema-direita, voltando aos anos 1930, tem sido sobre a erosão das liberdades democráticas. Começa com a liberdade de imprensa, tentando destruir sua oposição política. Há ameaças à capacidade de lidar com problemas, como a emergência ecológica. Este é o problema definidor do nosso tempo. Temos um planeta para viver e estamos destruindo-o. E quase todos os políticos de extrema-direita são muito céticos sobre a crise ecológica. Se você quer resolver os problemas da sua sociedade, há poucas evidências de que a extrema-direita seja um bom caminho a seguir.
A sociedade falhou por não imaginar uma alternativa viável ao capitalismo?
Sim, é uma ótima questão. Isso tem muito a ver com a nossa falta de imaginação. O famoso filósofo Slavoj Žižek uma vez disse: ‘é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo’. Uma das coisas que eu fiz no meu novo livro é olhar para diferentes formas como as economias funcionaram em diferentes momentos da história. Por exemplo, no Japão no século 18, na cidade de Edo, a atual Tóquio, eles tinham o que hoje chamaríamos de economia circular, onde quase todo recurso era reutilizado. Se você tivesse um quimono, você poderia usá-lo até o tecido começar a se desgastar, e então você o transformaria em pijamas, depois cortaria em fraldas para o seu filho, e então o transformaria em panos de limpeza, e finalmente queimaria o algodão como combustível. É apenas um exemplo. Precisamos nos mover em direção a economias pós-crescimento, pós-capitalistas.
E a esquerda falhou por não apresentar um modelo melhor que o socialismo?
Eu acho que sim. É uma posição justa a se tomar no sentido de quando a esquerda fala sobre como nossa economia deveria ter a propriedade estatal de tudo. Não tenho certeza se quero que a IA seja de propriedade do Estado, porque isso é o que acontece na China ou na Rússia, e você acaba com uma sociedade de vigilância. Minha mulher [Kate Raworth] é economista ecológica. Ela criou um novo modelo chamado ‘economia do donut’ - há um livro a respeito [Economia Donut, lançado no Brasil pela Zahar]. A ideia desse modelo é querer elevar todos acima de uma fundação social básica, dar às pessoas comida, água e moradia decente. Então, não é tanto sobre crescimento, é sobre equilíbrio. O que precisamos são esses modelos alternativos que não se encaixam muito bem nem à esquerda nem à direita.
A esquerda moderna se desconectou da classe trabalhadora?
Se você observar, por exemplo, a recente eleição nos EUA, isso se torna muito claro. As pessoas que votariam nos democratas há 40 anos agora estão votando nos republicanos por causa daquela sensação de que a direita está oferecendo um senso de significado que a esquerda não está oferecendo. Não acho que a direita esteja provavelmente oferecendo os tipos certos de soluções econômicas, mas eles fazem as pessoas sentirem que podem prover o tipo certo de soluções. A esquerda, em muitos países, perdeu aquele senso básico sobre estabilidade, estabilidade material básica para prover.
O senhor esteve no Brasil algumas vezes. Eu gostaria de entender sua perspectiva geral sobre a sociedade brasileira e suas contradições, desigualdades. Como analisa o Brasil?
Cerca de 25 anos atrás, eu costumava ensinar política latino-americana em universidades. Não tenho grande especialização no Brasil, mas eu costumava ler sobre a história brasileira. O que sempre me impressionou foi a vitalidade dos movimentos sociais. Pense em 1984, as Diretas Já. 1 milhão de pessoas nas ruas desafiando o regime autoritário, se unindo. Quando penso no Brasil, penso na força dos movimentos ao longo de sua história.
Isso conecta com uma citação sua no livro - de que os ‘movimentos disruptivos podem mudar o sistema’. Poderia elaborar?
Precisamos que os governos ajam em relação à crise climática. E se você olhar historicamente, quando os governos tomam uma ação rápida? Eles às vezes fazem isso durante uma guerra ou pandemia. Mas a crise climática não parece uma guerra. Os movimentos disruptivos têm uma longa história, nos últimos 200 anos, de serem capazes de criar mudança, seja expulsando os britânicos da Índia ou conseguindo o voto para as mulheres na Europa. Não estou dizendo que todo mundo deveria ir para a rua e se tornar um ativista radical. Só acho que precisamos dos movimentos porque simplesmente não consigo ver mudanças urgentes sem eles.
História para o Amanhã
- Autor: Roman Krznaric
- Tradução: Alessandra Bonrruquer
- Editora: Difel (336 págs.; R$ 84,41)
Palestras de Roman Krznaric em SP
- Datas: 5 e 6 de dezembro
- Ingressos: theschooloflife.com
- Onde: Unibes Cultural – Rua Oscar Freire, 2500 (dia 5/12); e The School Of Life Brasil – Rua Medeiros de Albuquerque, 60 (dia 6/12)
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