THE NEW YORK TIMES - Na edição de 26 de junho de 1948, a revista The New Yorker publicou The Lottery, o conto perturbador de Shirley Jackson, e não é exagero dizer que os leitores foram à loucura. Escreveram centenas de cartas, furiosos ou temerosos com o que aquele retrato lentamente revelador da violência numa cidadezinha estava fazendo naquela revista de inspiração literária.
Agora considerado um clássico americano, o conto se tornou presença inevitável nas salas de aula e influência revigorante para artistas propensos a ver a podridão por baixo das coisas. Hoje, 75 anos depois, treze escritores e cineastas – além do neto de Jackson, autor de graphic-novels – recordam a primeira vez em que leram “The Lottery” e por que essa leitura os acompanhou desde então.
Stephen King
Escritor
“Li na sala de leitura da minha boa e velha escola de ensino médio. Minha primeira reação: choque. Minha segunda reação: como ela fez isso?”
Jean Kwok
Escritora
“Como imigrante chinesa de primeira geração, não era muito exposta a ficção literária. De início, fui seduzida pelo comportamento calmo e folclórico das personagens, embora sentisse um medo crescente conforme a história avançava. Quando ‘The Lottery’ chegou ao fim, senti que tinha sido atingida pela pedra que atingiu Tessie Hutchinson. Ainda hoje o conto me lembra que é papel do artista levar os leitores a um território inesperado.”
David Sedaris
Escritor
“Se não me engano, minha professora da sétima série nos mostrou o filme antes de nos passar a leitura do conto, o que é lamentável. Eu me lembro de estar lá no escuro quando o filme acabou, completamente destruído. Reli “The Lottery” a cada poucos anos e ouvi muitas versões em áudio, nenhuma das quais acerta a última frase, na minha opinião (o mais próximo é Maureen Stapleton em The Caedmon Short Story Collection). Quando li o conto pela primeira vez, parecia uma história nova – era nova, suponho, com apenas 23 anos de idade. Agora me pergunto o que um jovem pensaria a respeito. Os nomes antiquados: Tessie, Bobby, Dickie, Old Man Warner. Nenhuma das esposas trabalha fora de casa. Mas, quando a história chega àquele final assustador, nada disso importa.”
Rob Savage
Cineasta
“Como cresci numa cidadezinha do interior da Inglaterra, ‘‘The Lottery’ confirmou todos os meus medos e suspeitas sobre o que estava por trás daquela superfície folclórica e digna de cartão postal da minha comunidade, além da crueldade implícita nas tradições que seguimos cegamente. Dava para ver os rostos sorridentes dos meus amigos e familiares na multidão barulhenta do conto, reconheci a alteridade e o preconceito murmurado da minha cidade na violência da história. Eu era criança quando li ‘The Lottery’ pela primeira vez, uma criança esquisita. Fiquei ainda mais esquisito quando meu mundo se expandiu para além do paroquial. E quanto mais ficava esquisito para as pessoas com quem cresci, mais conseguia me imaginar tomando pedradas.”
Carmem Maria Machado
Escritora
“Eu era uma criança ansiosa que adorava, até mesmo procurava, histórias assustadoras – e este conto foi imensamente importante para mim. Não leria o resto da obra de Shirley Jackson até meus vinte e poucos anos, mas aquela icônica frase final me empurrou dos meus ‘poemas encantadores sobre fadas pondo orvalho nas flores” até minha fase de ‘escrever sobre os muitos horrores da vida’. Sou profundamente grata pelo empurrão.”
Josefina Decker
Cineasta
“A primeira vez foi no ensino médio e acho que confirmou minha compreensão nascente de que o mundo tem regras cruéis e ninguém entende por que elas existem. Mais recentemente, trabalhei com uma mãe adolescente que o Serviço de Proteção à Criança do Texas tinha separado do filho por duas semanas porque seu parceiro ‘cheirava a maconha’. Nenhuma prova de verdade. Shirley Jackson conseguiu chegar ao cerne de algo incrivelmente verdadeiro: as pessoas são atacadas, sem piedade, e a sociedade bate palmas. Porque é algo que fizemos desde sempre.”
James DeMonaco
Cineasta
“Tinha uns 12 anos, era um menino propenso a terrores noturnos. ‘The Lottery’ era uma presença constante nos meus pesadelos. Não era a violência do final da história que me tirava o sono – era tudo o que Shirley Jackson não tinha nos contado. Ela nunca nos disse onde estávamos. Nunca nos disse em que ano estávamos. E o mais importante e assustador: nunca nos disse o porquê.
Meu primeiro rascunho de The Purge tinha uma narração de abertura de três páginas que explicava em detalhes como essas noites de expurgo surgiram na sociedade americana. Filmamos essa sequência e a incluímos no primeiro corte do filme. Certa noite, acordei assustado. Tinha sonhado com ‘The Lottery’ mais uma vez, ainda atormentado pela mesma pergunta – Por quê? No dia seguinte, cortei a abertura, eliminando qualquer explicação sobre as origens dos expurgos.”
Idra Novey
Escritora
“Na descrição de Jackson sobre os meninos que sabem que serão elogiados por juntar pedras sem ninguém pedir, no poder concedido aos mais dispostos as práticas em vigor, reconheci o time de futebol americano da minha escola de interior, reconheci certas vozes de pais nas arquibancadas. Reconheci nosso ritual obrigatório todas as tardes: os alunos baixavam a bandeira e a dobravam numa série de triângulos. Se alguém tivesse a ousadia de perguntar se não seria melhor tentar algum outro tipo de dobra, era imediatamente ridicularizado ou ignorado.”
Miles Hyman
Autor de graphic novel
“Li ‘The Lottery’ pela primeira vez quando era muito jovem para entender. Nas releituras seguintes, fiquei mais sintonizado com o ofício de minha avó, fascinado com sua linguagem meticulosa, quase obsessiva. Mas foi ao adaptar ‘The Lottery’ como graphic novel em 2016 que senti que finalmente entendi a história. Esse experimento incomum me deu a chance de desmontar o texto original palavra por palavra, juntando tudo de novo em forma visual – uma espécie de jogo de montar a ameaça, por assim dizer.”
Tananarive Due
Escritora
“Olhando para trás, me pergunto como ‘The Lottery’ pode ter ressoado em mim como jovem negra, cuja família morava num bairro predominantemente branco do sul da Flórida. Tivemos alguns incidentes – jogaram tomates na nossa casa, riscaram nosso carro – mas a maioria dos dias eram ensolarados e brilhantes, como o descrito na abertura do conto de Shirley Jackson. Eu não sabia que meus pais estavam tão preocupados com as ameaças contra nossa família que recrutaram amigos brancos da igreja Unitarista para vigiar nossa casa à noite. Mas talvez, como minha mãe antes de mim, eu já tivesse aprendido como a ficção de terror consegue expressar medos da vida real sobre os quais não me permito pensar conscientemente – como o que poderia acontecer se uma comunidade inteira se voltasse contra nós e começasse a atirar pedras.”
Danielle Trussoni
Autor
“Como jovem escritora, eu estava começando a escrever sobre violência e percebi que poderia ir ainda mais longe.”
Stephen Graham Jones
Escritor
“Deve ter sido lá pela quarta série, talvez quinta. Escolinha perdida no matagal do oeste do Texas. Acho que aconteceu quando deixamos de ter um professor ensinando todas as matérias e começamos a ir de sala em sala, professor em professor. Parecia um negócio bem adulto. A coisa que se alojou dentro de mim: tudo o que está prestes a acontecer – a violência, o sangue, a matança – fica acontecendo na minha cabeça, depois que o conto termina. Eu fechava o livro, mas a história continuava murmurando.”
Levi Holloway
Dramaturgo
“Eu tinha trinta e poucos anos, estava começando o curso para ser dramaturgo em Chicago. Aquela primeira leitura – fiquei rindo alto, sozinho, depois li de novo, imediatamente. Meu coração parou.”
Paul Tremblay
Escritor
“Reli ‘The Lottery’ muitas vezes e continuo assombrado com as possibilidades e ambiguidades da última frase proferida pela condenada Sra. Hutchinson: ‘Não é justo, não é certo’. Ela é simplesmente uma vítima do acaso? Ela acreditava que a loteria fora arranjada para dar seu nome? Está criticando toda a loteria, o sistema social/político e suas horrorosas injustiças? É a própria existência que não é justa nem certa? Todas as grandes histórias giram em torno dessa última questão.”
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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