Entrei no táxi, ouvi uma voz familiar. Sentei-me e descobri. Era a minha no rádio do carro. Dei meu endereço e o motorista dirigiu em silêncio, prestava atenção à narrativa. Segui a história com ela, apesar de conhecê-la. Uma das crônicas de meu livro Se For Para Chorar Que Seja de Alegria, meu primeiro audiobook. Fiquei quieto, deixando ele saborear. Uma sensação curiosa, ele sorria de leve, ou dava uma gargalhada, depois não tinha reação alguma. Uma hora, ficou triste e vi que estava acompanhando a história da mulher de 90 anos que nunca tinha sido beijada e perguntava a todas as mulheres amigas, conhecidas, velhas, jovens, maduras: como é beijar?
É curiosa a sensação de ver uma pessoa que escuta um texto nosso, sem saber que fomos nós que escrevemos. Muitas vezes perguntamos 'gostou do livro?' e a pessoa dá uma resposta simpática. Mas ali, não. Ele reagia às emoções, autenticamente. Estava imerso no texto, súbito brecava e pedia desculpas, a história o entretia mais do que o trânsito. Aliás, o trânsito não entretém ninguém. Chegamos ao nosso destino, como diz aquela voz do GPS. Perguntei: “O senhor gosta de histórias? Lê livros?"
“Gosto de histórias, mas não leio, mal sei ler, me dá dor de cabeça. Mas gosto de histórias e um amigo me deu esse vídeo... ou não sei com chamar. Prático, ligo aí e vou me esquecendo do mundo. Esse amigo disse que conhece quem escreveu as histórias e que se desse certo um dia me apresentaria. Eu imaginei que o homem estivesse morto. Os escritores devem ser bem velhos e ou já morreram.”
“Esse aí está bem vivo, é um sujeito legal, quem sabe um dia o senhor o encontra”, respondi.
“Tomara, tomara, e, encontrando ele, diga que gostei das histórias, até queria mais.”
Desci, não achei que fosse boa ideia me identificar, deixei-o com seu mundo, seu imaginário. Lembrei-me do dia em que entrei no estúdio de gravação. Uma cabine, o produtor, o técnico de som.
Havia o livro inteiro digitado em corpo grande para me auxliar. Pensei que fosse fácil, era ir lendo, lendo. Fomos gravando crônica a crônica. Voltávamos, ouvíamos. Perfeito. Ou era preciso regravar, a voz tinha tremido, um pigarrinho, uma letra trocada. Íamos e voltávamos, o técnico era perfeccionista, percerbi erros mínimos que tomam corpo quando ouvidos. Quando eu me ouvia, eu dava razão. Comia letras. Pulava um palavra. Afinal, nunca fui radio ator, é uma arte.
Passamos três dias naquela gravação. Foi uma experiência e uma descoberta. Eu, que sempre odiei minha voz, até me achei simpático, acolhedor. O texto ouvido se transforma. Daqui para a frente vou dar o meu audiolivro de presente a taxistas pedindo que toquem. Quem sabe podemos atingir um público que não conhecemos, e que tem ânsia por histórias. Um novo mundo.
* Ignácio de Loyola Brandão é escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e cronista do 'Carderno 2'
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