Análise | O estoicismo está mais popular do que nunca. Pena que esteja tão incoerente agora; entenda

Filosofia desenvolvida por pensadores como Epiteto, Zenão e o imperador Marco Aurélio está em podcasts, newsletters, no Instagram, no YouTube e livros best-seller, mas se transformou em aforismos motivacionais

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Por Mark Athitakis (The Washington Post)

Em meados dos anos 1990, pouco depois de me formar na faculdade, um amigo insistiu para que eu lesse O Manual, de Epiteto, o filósofo estoico romano. Para um introvertido desajeitado como eu, a premissa do livro era irresistível: Epiteto tinha escrito um manual de como ser adulto – literalmente, um manual para você ser uma pessoa – em sentenças reforçadas com certeza moral.

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“Das coisas, algumas estão em nosso poder e outras não”, afirma ele na primeira linha. “Deseje que as coisas que acontecem sejam como são e você terá um fluxo de vida tranquilo”. Epiteto não deixava o mundo mais sensato e ordenado, mas sugeria que nossas respostas a esse mundo poderiam ser sensatas e ordenadas.

Naquela época, conseguir O Manual significava garimpar sebos, onde encontrei uma brochura da década de 1960 que trazia mais alguns dos maiores sucessos do estoicismo, escritos por Sêneca e Marco Aurélio.

Agora estamos inundados de livros sobre o estoicismo. É, sem dúvida, a principal doutrina não-religiosa dos Estados Unidos.

O ex-publicitário e jornalista Ryan Holiday construiu uma indústria em torno do estoicismo, com podcasts, newsletters, feeds do Instagram, vídeos do YouTube e uma estante de livros (alguns deles disponíveis em português) que venderam cerca de 6 milhões de cópias – seu mais recente, Right Thing, Right Now [algo como A coisa certa, agora mesmo, em tradução livre], sai em junho. (Ele também vende bugigangas como moedas memento mori, um souvenir da noção estoica de que a morte chega para todos nós).

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O patinador olímpico holandês Mark Tuitert entrou em campo com um manual de sua autoria, The Stoic Mindset: Living the Ten Principles of Stoicism [”A mentalidade estoica: vivendo os dez princípios do estoicismo”, em tradução livre].

A empresa de mídia School of Life, que faz divulgação de filosofia no YouTube e em outros lugares, produziu um baralho de cartas com o tema do estoicismo no ano passado, oferecendo tudo dentro de uma caixa preta e branca que promete que o conteúdo vai ajudar “você a encontrar serenidade e força neste mundo difícil”.

Busto do imperador Marco Aurélio no Museu Nacional da Sérvia. Foto: Erman Gunes - stock.adobe.com

Mas talvez a prova mais clara de que o estoicismo virou moda é que o próprio Manual agora tem um manual: janeiro marcou a chegada de Stoicism for Dummies [Estoicismo para principiantes em tradução livre], de Tom Morris e Gregory Bassham.

Os dois percorrem habilmente a história estoica, desde o desenvolvimento da filosofia por Zenão, por volta de 300 a.C., depois que ele sobreviveu tranquilamente a um naufrágio e perdeu todos os seus bens (o que já é bem estoico, claro) até a atual explosão de popularidade graças a escritores como Holiday, Massimo Pigliucci e Donald J. Robertson, que escreveu uma pilha de livros sobre o assunto, sendo o último deles Marcus Aurelius: The Stoic Emperor [Marco Aurélio: o imperador estoico].

O problema do estoicismo contemporâneo

Não é difícil entender esse sucesso. Como filosofia, o estoicismo prefere a ação no mundo real em detrimento da especulação wittgensteiniana. E entrega seus conselhos em pedaços prontos para virarem memes: o feed do Instagram @dailystoic, administrado por Holiday, tem mais de 3 milhões de seguidores. Como a escola de pensamento é produto de civilizações mortas, você pode aderir sem ouvir acusações de oportunismo, conversão ou apropriação cultural.

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Voltei a mergulhar nos estoicos recentemente, na esperança de recuperar um pouco daquela certeza que busquei aos vinte de poucos anos. Já passei dos cinquenta, trabalho com jornalismo, crio um adolescente e moro nos Estados Unidos em 2024: ter equilíbrio emocional é uma coisa valiosa. Mas o que é desanimador no estoicismo contemporâneo é que ele virou uma coisa escorregadia, desmembrada praticamente ao ponto de perder todo o sentido.

Parte do problema é que o estoicismo contemporâneo deseja ardentemente escapar aos ditames mais severos dos seus fundadores. Marco Aurélio e companhia insistiam na frieza diante da morte, fosse a nossa ou de uma criança. Eles tendiam a ver o amor e o afeto como distrações. (Sêneca: “A amizade é sempre útil, mas muitas vezes o amor prejudica”).

Robertson tenta vender essas virtudes conectando-as à terapia cognitivo-comportamental moderna, enquanto os autores de Stoicism for Dummies tentam reformular a ideia do amor afirmando seus usos práticos na amizade.

Crítica às emoções molengas

Ainda assim, continua sendo uma crítica às emoções molengas – uma exortação a mantermos até mesmo os entes queridos à distância: Epiteto escreveu que devemos ver um jarro como algo que pode quebrar, então, quando beijamos nossos filhos ou cônjuges, devemos dizer a nós mesmos que estamos “beijando um ser humano, porque assim você não ficará chateado quando eles morrerem”.

Livros sobre estoicismo: 'The Stoic Mindset: Living the Ten Principles of Stoicism' [“A mentalidade estoica: vivendo os dez princípios do estoicismo”, em tradução livre], 'Marcus Aurelius: The Stoic Emperor' [“Marco Aurélio: o imperador estoico”] e 'Stoicism for Dummies' [“Estoicismo para principiantes”]. Foto: St. Martin's Essentials/Yale University Press/For Dummies via The Washington Post

Minha capacidade de equilíbrio emocional termina no ponto em que devo comparar minha esposa a uma peça de louça. Mas não tenha medo: os autores de Stoicism for Dummies observam que posso ser flexível. “No final, você terá de decidir se vai até o fim com os estoicos, ou se vai adotar apenas algumas perspectivas de todo o pacote de ensinamentos que eles oferecem”. Isso é bom: todas as religiões têm versões reformistas e adeptos que renegam a ortodoxia. Mas o estoicismo contemporâneo se diluiu na linguagem do discurso motivacional.

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A maioria dos livros de Holiday é publicada pela Portfolio, o selo comercial da Penguin Random House – e, o que é mais notável, sua série sobre as virtudes estoicas não trata do estoicismo em si. Apresenta histórias inspiradoras sobre Florence Nightingale, Frank Serpico ou Martin Luther King. O livro de exercícios de Tuitert é mais sobre mentalidade para grandes realizações – vá em busca do ouro! – e não se sentiria deslocado numa palestra do coach Tony Robbins.

Além disso, o estoicismo moderno se desvia para uma arenga hipermasculina que às vezes se transforma em prepotência machista. Para demonstrar a importância do conceito estoico de aretê, ou excelência moral, o livro Dummies traz a imagem de um homem que tatuou a palavra no antebraço – bem bombado, com as veias salientes.

Em seu livro Courage Is Calling [algo como O chamado da coragem, em tradução livre] (2021), Holiday celebra os processos judiciais do bilionário da tecnologia Peter Thiel contra o site Gawker como evidência do mesmo destemor que impulsionou Nightingale e – claro – Napoleão. “Seria bastante razoável ficar alarmado com aqueles processos secretos”, escreve ele, mas “a ação por si só importa muito pouco – o que importa são os fins para os quais nos afirmamos e o nosso poder”.

E assim o estoicismo moderno de algum jeito se transformou em aforismos motivacionais ao estilo Successories, em machismo que-se-dane-todo-mundo e numa doutrina “os fins justificam os meios”. Pode ser muita coisa, mas não é uma filosofia moral coerente.

Os antigos estoicos tiveram críticos na sua época: Robertson cita um escritor que disse que seus adeptos estavam destinados a “envelhecer no torpor de uma vida morosa e, por assim dizer, sem ímpeto”.

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Ainda estou interessado nas ideias de Epiteto e companhia; há muito a ser dito sobre como cultivar o equilíbrio e manter o controle diante das adversidades. Mas a filosofia na sua versão atual não oferece muito além de afirmações com um verniz de sabedoria dos antigos. Essa filosofia de adesivo de para-choque tem seus limites, e os estoicos já alertavam para esse risco. Quinto Séxtio certa vez escreveu: “Nunca anseie por agradar a multidão”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Análise por Mark Athitakis

crítico e autor de The New Midwest

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