Roland é um menino da Inglaterra do pós-guerra que é enviado para um internato onde conhece uma professora de música, Miriam Cornell, que se aproveita de sua vulnerabilidade. O que vem a seguir é uma sequência de fatos extraordinários, com a trajetória do rapaz se sobrepondo aos eventos marcantes das últimas décadas: a crise dos mísseis em Cuba que estremeceu as relações entre Estados Unidos e União Soviética, o colapso da usina de Chernobyl, a queda do Muro de Berlim, os atentados de 11 de Setembro, a guerra do Iraque, a pandemia da covid.
Nada surpreendente para o leitor de Ian McEwan, escritor inglês de 74 anos que gosta de explorar eventos do mundo real em sua ficção. É o que acontece em seu mais recente romance, Lições, lançado agora pela Companhia das Letras. “Roland é um sobrevivente que tem um bom coração e algumas conquistas na vida”, comenta McEwan ao Estadão, em entrevista exclusiva por Zoom. A banalidade de uma vida, que se torna épica, inspira um romance delineado a partir de um debate sincero sobre família, Estado e amor. Sobre isso, McEwan falou na seguinte entrevista.
Como o senhor descreveria Roland?
Acredito que é um sobrevivente que tem um bom coração e algumas conquistas na vida. Ele não se torna um dos maiores escritores da Europa, nem um grande poeta, ou um grande jogador de tênis, ou mesmo um exímio pianista, mas Roland cria uma criança quando é abandonado pela mulher e se transforma em um pai diferente. Mesmo tentando se educar aos 30 anos, ele acaba machucado por várias experiências. É possível dizer que foi dado a ele algo que é tanto uma maldição quanto um presente. A maldição foi ter tido um caso quando jovem, aos 14 anos, e o presente, muito estranho, é que ele vivencia esse êxtase sexual com tal intensidade, mesmo sabendo que não vai mais se repetir. Ele deseja um paraíso agora inalcançável. Roland foi abusado por sua professora de piano sem perceber que foi manipulado. De uma certa forma, ele se considera um fracassado, mas, como eu disse, tem um bom coração.
Questões morais pontuam o romance. O senhor acredita que os escritores têm alguma obrigação moral com seus personagens e também com os leitores?
Posso falar apenas por mim. Sempre desconfiei de escritores que me dizem o que eu deveria estar fazendo. E eu não quero tampouco dizer aos outros o que devem fazer. Alguns escritores podem escrever sobre um casamento que está se desfazendo e nunca fazer qualquer referência ao mundo ao redor. É possível fazer uma ficção extraordinária desse jeito e, no meu caso, tem relação com meu amor por uma forma de realismo: grande parte do meu trabalho está enraizado em um tempo, espaço e circunstâncias políticas e sociais que quero examinar. Faço isso porque me sinto obrigado? Não. Porque me intriga, quero fazer essas explorações. E os tipos de romance de que mais gosto são os que, de alguma maneira, têm uma história pessoal intensa, mas com algum contexto. Nunca gostei do romance existencial. Isso me assombrou durante minha juventude. Jamais admirei romances em que você não sabe nada sobre o personagem, ou a cidade ou coisa alguma. O que me intriga é como vivemos com o tempo que temos para sofrer ou aproveitar. É possível ver isso em escritores notáveis.
Quais?
Anthony Trollope, Dickens, Flaubert, Tolstoii. Isso é sempre uma grande dificuldade. O Modernismo no começo do século 20 lutou contra isso. Mesmo assim, alguém dirá: “E Ulysses, de Joyce, está inserido nesse contexto?”. Acredito que o século 19 nos ofereceu uma grande beleza em sua atenção ao mundo e, de uma certa maneira, nós nunca podemos abandonar a estética modernista. Então, como casar os dois? É só nos mantermos leais à ideia de personagem para aproveitarmos e nos satisfazermos com aquela revolução estética que nenhum de nós jamais esqueceu, vinda com uma geração de escritores e poetas modernistas. Você pode escrever um romance que ainda está ciente dos limites e possibilidades da linguagem, que tem a presença do autor, que reflete sobre a natureza da criatividade, que está afinado com o vasto histórico da imaginação, que faz dela o que é, e ainda assim ter personagens que realmente possam ser sentidos quase como um fantasma na sala. Esse seria meu projeto se eu tentasse descrever o que tenho tentado fazer ao longo desses 50 anos. De alguma maneira, passear pela condição humana, pela condição social e ainda ficar vivo para todas as possibilidades que a revolução modernista nos deu, especialmente Joyce.
O que realmente podemos aprender com o passado?
Acredito que seja algo muito limitado. Estamos falando sobre traumas pessoais. Você pode esquecê-los, ou suprimi-los, ou viver com eles, mas nunca vão embora e é por isso que sempre lembro que temos uma palavra na língua inglesa frequentemente usada pelas pessoas e que acho falsa: “closure”, encerramento, como se você pudesse fazer algo, dizer algo, ou que alguém pudesse dizer algo a você e tudo estaria bem. Isso está absolutamente fora do contexto da experiência humana. Se temos traumas do passado, devemos aceitá-los como algo que temos de carregar ao longo da vida, justamente aquilo que nos molda. Talvez seja fatalista, mas é uma experiência verdadeira. O título do meu livro é um tanto irônico, porque não posso definir quais são as “lições” – esse é um trabalho para o leitor. Para Roland, a lição mostra que a experiência traumática na sua vida nunca vai deixá-lo. Ele pode fugir, às vezes se esquecer dela ou mesmo distorcê-la em sua memória, mas o fato é que ela sempre estará lá. É uma bagagem para carregar pela vida.
E o que podemos aprender com a paternidade, algo que marcou a trajetória de Roland?
Há duas coisas para discutir aqui. Uma é o processo lindo e extraordinário pelo qual um pequeno ser humano cresce – mentalmente, quero dizer. É quando você entra em um mundo estranho, especialmente se é próximo de suas crianças. Há uma frase adorável no livro de um escritor americano sobre drogas: “Se você quiser saber como é tomar LSD, então tome café da manhã com uma criança de 4 anos”. É completamente falso, não é nada parecido com LSD, mas sei o que ele quer dizer. Você entra em um mundo com distintos tipos de associações da realidade quando observa a mente de uma criança de 4 anos. É como Rolland diz: trata-se de um duplo, trabalho e amor, exaustão e felicidade. Uma vez que nos tornamos pais, perdoamos mais os nossos pais, percebemos que eles também eram melhores do que pensávamos.
O senhor acredita que os escritores deveriam se tornar mais cautelosos depois do ataque sofrido por Salman Rushdie?
Não vejo dessa forma. O ataque a Rushdie está mais do que nunca em consonância com nosso tempo, porque agora vivemos em um mundo em que as pessoas dão aval à morte tão facilmente – basta ver os tiroteios em massa, particularmente nos Estados Unidos, onde a ideia de atacar alguém é mais forte como cultura. Nesse sentido, creio que todos deveríamos estar preocupados, não apenas escritores. É fácil esquecer que houve um ataque direcionado a alguém que usou todos seus recursos de coragem para defender uma causa que não era apenas para si, mas pela situação de muitos escritores perseguidos, aprisionados e caçados em todo o mundo. A fatwa contra Rushdie veio em 1988 e, ao longo dos três ou quatro anos seguintes, quando ele era uma pessoa caçada e sentenciada à morte, o mundo estava se abrindo, a democracia estava aparecendo, não somente na Europa, mas também na América do Sul e na África do Sul. Agora, quando alguém tenta matá-lo, parece que estamos vivendo em um tempo em que a liberdade de expressão está regredindo. No Brasil, vocês provavelmente experimentaram um dos mais traumáticos ataques a uma sociedade democrática. Nos EUA, não sabemos se a República vai sobreviver. Isso acontece na Hungria, Polônia, Grã-Bretanha, França, Itália. É um verdadeiro retrocesso contra a sociedade aberta, movido por impulsos humanos muito obscuros. Então, o ataque a alguém torna-se simbólico neste momento que estamos vivendo. E é um problema que pertence a todos nós.
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