‘O mundo real foi reduzido à tela de um celular’, diz escritor Don DeLillo

Um dos principais nomes da literatura americana tem a obra ‘Submundo’ reeditada, na qual retrata uma época que marca o fim da inocência americana e o início da Guerra Fria

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Foto do author Ubiratan Brasil
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Foto: Joyce Ravid/Divulgação
Entrevista comDon DeLilloEscritor americano

Para o escritor Don DeLillo, a primeira página dos grandes jornais americanos de 4 de outubro de 1951 deveria ter dividido o espaço com dois grandes assuntos ocorridos no dia anterior e que interessavam aos leitores. De um lado, um fato real estampou nos diários: a histórica vitória do New York Giants sobre os Dodgers no campeonato de beisebol graças a um home run (a jogada que define a partida) de Bobby Thomson. Do outro, uma notícia então sigilosa de um fato terrível que acontecia na mesma época: a União Soviética testava secretamente uma arma nuclear no Casaquistão, fomentando a Guerra Fria.

Essa conjunção de fatos é apenas uma parte do enorme caleidoscópio exibido em Submundo, caudaloso romance de DeLillo que atravessa quase meio século da história americana, unindo personagens mais distintos a tramas extraordinárias. Lançado em 1997, o livro - cuja ambição era a de retratar a psique americana naquelas décadas perigosas - ganha uma nova edição, pela Companhia das Letras.

Era o décimo primeiro romance de DeLillo, o mais longo (816 páginas), ambicioso (compõe um painel monumental do mundo contemporâneo) e complicado (algumas frases começam em uma parte do estádio de beisebol para terminar em outra) - mas, para muitos, seu melhor trabalho. “DeLillo trouxe cada vez mais o ambiente do poder e da celebridade para sua obra - o mundo da história contemporânea”, escreveu David Remnick na revista The New Yorker, em 1997. “É a comédia obscura da Guerra Fria; está carregada de frases que capturam, graças à escolha da palavra precisa, um momento na história americana.”

Diversos personagens ocupam as páginas de Submundo, de uma artista que vive no deserto onde pinta fuselagens de aviões de guerra a um especialista em armazenamento de lixo tóxico, passando por um serial killer que assassina motoristas no trânsito e um grafiteiro genial. O romance traz também figuras reais como J. Edgar Hoover, Frank Sinatra, Jackie Gleason e Lenny Bruce.

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Capa do livro Submundo, de Don DeLillo. Foto: Companhia das Letras

Mas o protagonismo está na construção de sua narrativa genial - logo na abertura, DeLillo utiliza o voo da bola de beisebol durante aquele clássico jogo de 1951 para dar saltos no ponto de vista, de forma que uma frase começa a ser dita por uma pessoa e termina por outra. As palavras viajam da mente de um personagem para a de outro, o tempo presente logo é trocado pelo passado em um simples mudar de parágrafo. “Isso foi crucial para minha sensação de quebrar limites”, disse DeLillo ao Estadão.

Aos 86 anos, ainda um dos escritores mais originais e inventivos do nosso tempo, arguto ao analisar a radical mudança sofrida pela sociedade americana, ele respondeu por e-mail a estas questões.

Submundo começa com um acaso histórico. Na mesma época em que a URSS explodiu sua segunda bomba atômica, um famoso jogo de beisebol aconteceu em Nova York. O jogo é o fim da inocência americana e o início da Guerra Fria. Foi essa estranha dualidade que o inspirou a escrever o romance? Pode-se dizer que você sentiu “o poder da história”?

O poder da história: sim, o jogo de beisebol e a explosão nuclear me fizeram começar a pensar em uma versão fictícia de um conflito mundial. Minha pesquisa me levou às ruas locais da cidade de Nova York, onde ficava o estádio de beisebol e, à medida que o romance começou a se expandir, viajei para várias partes dos Estados Unidos - “seguindo o beisebol”.

Como o senhor situaria Submundo em relação a seus outros romances?

Levei cinco anos para escrever Submundo e fiquei imerso nas histórias e nos personagens de uma forma que nunca havia experimentado antes. Havia prazer ligado ao desafio e também a sensação na época de que o romance estava se escrevendo sozinho e eu estava simplesmente acompanhando.

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A memória e o passado afetam profundamente a estrutura de Submundo. O senhor poderia explicar por que concebeu essa cronologia, digamos, retrógrada?

A ideia de permitir que a narrativa avance cronologicamente e então, em certo ponto, salte para um futuro distante e comece a retroceder - isso foi crucial para a estrutura do romance e para minha sensação de quebrar limites. Gostaria também de salientar que a primeira frase do romance (“Ele fala com sua voz, americana, e há nos olhos dele um brilho semiesperançoso”) foi a última que escrevi.

No livro está escrito “A civilização se constrói, a história se conduz”. O senhor poderia discorrer sobre isso?

Não me lembro da observação ou do contexto - talvez eu quisesse dizer que uma civilização pode levar séculos para ser construída, mas que a história acontece dia a dia, talvez hora a hora, impulsionada pela força da vontade humana: presidentes, imperadores, governantes de vários tipos e, claro, a onda de humanos anônimos que se unem para realizar uma causa.

O senhor está mais interessado em perceber como o passado é diferente do presente ou em como as diferentes épocas podem ser semelhantes?

Espera-se que o passado seja diferente do presente, pelo menos em teoria. Mas, quando diferentes épocas mostram certas semelhanças, pode ser uma revelação sombria. A situação atual envolvendo a Rússia e a Ucrânia pode fazer as pessoas se lembrarem de conflitos anteriores.

Svitlana Gynzhul carrega uma sacola de compras ao lado do dossel da entrada de um antigo bunker nuclear soviético, que se tornou seu lar porque o vilarejo estava localizado entre as linhas de frente e devastado por bombardeios no início da guerra, em meio à invasão russa da Ucrânia, em Luch, região de Mykolaiv Foto: Lisi Niesner / Reuters

Há cerca de 50 anos, o teórico canadense da comunicação Marshall McLuhan previu que a mídia empurraria o mundo real para as margens e o substituiria. O senhor acredita que a previsão de alguma forma se tornou realidade?

Pode-se dizer que as pessoas reduziram o mundo real ao tamanho da tela de um celular. Pessoas em todos os lugares, olhando para seus dispositivos. E a pergunta é: o que vem a seguir?

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O jornalismo narrativo americano olhou muito para a ficção nos livros e se inspirou no arco narrativo clássico. O senhor acredita que ainda haverá lugar para essa narrativa conscientemente literária? De que maneira acredita que essa narrativa literária provavelmente desaparecerá ou mudará, quando se trata de jornalismo?

É possível que nos próximos anos as histórias que exigem ser contadas sejam reduzidas em tamanho e dependam menos da habilidade e experiência jornalística e mais de uma linguagem em evolução, ainda a ser determinada.

Suas histórias geralmente têm uma sensibilidade cômica e uma tendência sombria. É assim que o senhor vê o mundo?

Pode-se dizer que os escritores de ficção estão reescrevendo o mundo, e o resultado depende da sensibilidade de cada escritor. Pode-se dizer também que a ficção persistirá apesar do mundo e de suas próprias narrativas fraturadas.

O senhor acredita que os autores ficarão mais cautelosos ou temerosos após o ataque a Salman Rushdie?

Os escritores de ficção são movidos por seus impulsos, experiências e sensibilidades individuais - e duvido que o ataque a Salman Rushdie tenha um efeito debilitante.

Esta imagem estática do vídeo mostra um homem, à esquerda, sendo escoltado para fora do palco enquanto as pessoas atendem ao autor Salman Rushdie, centro-direita, na Chautauqua Institution, em Chautauqua, NY, sexta-feira, 12 de agosto de 2022. Foto: AP
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