O que esperar da entrada da obra de Oswald de Andrade em domínio público? Quase nada

Lira Neto, que lança biografia do escritor em 2025, fala sobre seu livro e os altos e baixos do autor: ‘Oswald estava à frente de seu tempo. Tão à frente que esse tempo ainda não chegou’

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Foto do author Ubiratan Brasil

O escritor Oswald de Andrade (1890-1954) foi, para muitos críticos, o principal nome do movimento modernista brasileiro. Afinal, era um dos poucos autores da sua época a apresentar um texto mais cerebral, argumentativo e não apenas preocupado em narrar uma história. Também deixou uma herança estética que se desdobra nas artes plásticas, na música, no teatro, no cinema.

Em 2025, quando se completam 70 anos de sua morte, Oswald de Andrade terá sua obra disponível em domínio público mas, ao contrário do ocorrido com outros autores na mesma situação (como Graciliano Ramos e Mário de Andrade), praticamente nenhuma editora se prepara para relançar seus livros ou mesmo estudos sobre sua trajetória.

”O próprio Oswald, em algum momento da vida, respondendo por que as editoras não lançavam grandes tiragens de seus livros, comentou que sua obra era muito experimental, portanto, limitadora de vendas”, afirma o escritor Lira Neto, autor de Oswald de Andrade: Mau Selvagem, biografia que a Companhia das Letras planeja lançar no dia 11 de fevereiro, destacando-se, por ora, como o principal evento.

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Reprodução de fotografia da Oswald de Andrade em exposição sobre sua vida no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, exibida em 2011 Foto: Daniel Teixeira/AE

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”Como todo vanguardista, Oswald pagou por isso. Ainda hoje, sua obra é vanguardista e, por isso, traz dificuldades para o leitor. Ao final da vida, tentou reverter a situação com o romance Marco Zero (1943), que não trouxe o esperado sucesso de vendas”, continua Lira, cuja biografia esmiúça principalmente momentos pouco conhecidos da vida do escritor, como a infância e adolescência, quando o menino solitário descobriu no escárnio a forma de se impor diante do bullying promovido pelos colegas que o hostilizavam na escola. Também as últimas décadas de vida, em que o ex-homem rico precisou vender obras de arte além de recorrer a agiotas e às casas de penhores para garantir a sobrevivência da família.

”Oswald estava à frente de seu tempo. Tão à frente que esse tempo ainda não chegou”, continua Lira Neto, lembrando que, além de um dos principais organizadores da Semana de Arte de 1922, Oswald deixou trabalhos fundamentais como o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928), além de ter introduzido a prosa experimental no Brasil, com Memórias Sentimentais de João Miramar (1924). Foi também o pensador de uma miscigenação sem nostalgia da identidade (bem à frente, portanto, do atual discurso multicultural), crítico das controvérsias éticas que envolvem a ciência e a tecnologia e, sobretudo, o criador de uma poética que restaura o arcaico para se libertar do passado.

”Oswald precisava ser mais bem lido”, acredita a professora universitária, pesquisadora e tradutora Gênese Andrade, uma das principais estudiosas da obra do autor paulista. “Muitos citam o Movimento Antropofágico sem nunca ter lido.”

Ela concorda com Lira a respeito da antevisão que marca a escrita oswaldiana. “Ele tinha agilidade mental - em Ponta de Lança, reunião de artigos e conferências da década de 1940, escreveu um texto que antecipou as críticas que depois seriam feitas contra o nazismo e o fascismo”. Gênese, que desde 2016 divide com o professor Jorge Schwartz a coordenação editorial da reedição da obra de Oswald pela Companhia das Letras, está envolvida nos poucos projetos previstos para 2025.

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Retrato de Oswald de Andrade, pintado em 1922, por Tarsila do Amaral Foto: Romulo Fialdini

O principal é uma publicação comemorativa do centenário de Pau Brasil, livro de poemas que é considerado um dos mais importantes do modernismo brasileiro, publicado inicial e parcialmente nas páginas do jornal Correio da Manhã, em março de 1924, sob o título de Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Trata-se de uma dissertação que defende a invenção e o resgate da cultura brasileira, principalmente da língua nacional, como sugere um de seus mais famosos trechos: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros”.

Em sua biografia, Lira propõe também rediscutir a obra de Oswald no que ela tem de mais atual: a antecipação do pensamento decolonial e a crítica feroz ao patriarcado, do qual pregava a decadência. “Com a Antropofagia, ele eleva a discussão entre a cultura de massa e a elite, entre o eu e o outro, pois, diante de algo estranho, o movimento pregava devorar aquilo para manter o eu, mas também o outro. Uma forma de respeitar e incorporar o outro. Não uma busca do individualismo, mas da alteridade.”

O detalhe também desperta interesse em estudiosos estrangeiros. A mexicana Odile Cisneros, professora de Línguas Modernas e Estudos Culturais da Universidade de Alberta, no Canadá, observa que, embora Oswald não seja um escritor famoso em inglês, sua obra foi analisada por muitos estudiosos da literatura. “No banco de dados de trabalhos acadêmicos da Modern Language Association, ao pesquisar o termo ‘antropofagia’, encontramos 100 referências a artigos, capítulos e livros”, diz ela, que publicou recentemente uma tradução de Galáxias, de Haroldo de Campos, em inglês, e planeja algo de Oswald para 2025.

Sarcasmo, ostracismo e redescoberta

O humor é outra marca registrada de Oswald, lembrada de forma positiva e também como danosa. O sarcasmo que cultivou a partir da adolescência foi usado tanto em artigos brilhantes para jornais como contra colegas na arte, como Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que dele se afastaram. “Oswald era inconsequente e nem sempre as pessoas toleravam suas atitudes”, comenta Gênese. “Por causa disso, muitos críticos depreciavam sua obra e, em troca, valorizavam a de Mário.”

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Foto de Oswald de Andrade aos 38 anos; vida do escritor será investigada em nova biografia Foto: Coleção Marilia de Andrade. Acervo CEDAE/Unicamp

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Em sua biografia, Lira Neto destaca um momento muito explicativo da ferocidade de seus comentários. “Quando escreveu a peça A Morta em 1937, Oswald enviou o texto para Alfredo Mesquita, nome fundamental na renovação do teatro brasileiro, que o devolveu com a seguinte anotação: ‘Impossível montar’. No mesmo papel, Oswald respondeu: ‘Opinião de uma besta’”.

Nos anos 1940/50, viveu no ostracismo, com dificuldades financeiras, seus livros fora de catálogo e com dificuldade para reatar velhas amizades. Suas colunas nos jornais também não tinham mais repercussão. “Nessa época, Oswald percebeu certas lacunas na sua formação acadêmica e se aproximou de intelectuais ligados à USP. Foi quando conheceu jovens como Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, os quais às vezes chamava de ‘chatos boys’ porque não tinham humor. Mas foram os responsáveis pelo ressignificado de sua obra”, comenta Lira.

“Voltou a ser lembrado depois da morte quando, nos anos 1960, os irmãos Campos redescobriram sua poesia. Também José Celso Martinez Corrêa dirigiu uma montagem revolucionária de O Rei da Vela, em 1967, que contou na plateia com um jovem chamado Caetano Veloso. Entusiasmado, ele voltou a Salvador e logo surgiu a tropicália”, diz.

Para o biógrafo, a poesia oswaldiana é absolutamente legível e influenciou a geração marginal dos anos 1970 ao introduzir o coloquialismo nos poemas, utilizando palavras simples e até piadas. “Sua obra dialoga com a de Paulo Leminski e a de Emicida, que já se referiu a ele”, diz. Foi no documentário AmarElo (2020) que o rapper cita o Manifesto Antropofágico do modernista:

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“Só o outro me interessa. Afinal, é no encontro que nossa existência faz sentido”

Oswald de Andrade

”Milionário na juventude, arruinado na velhice, o febril Oswald de Andrade viveu sob o primado do hedonismo e da dissipação. Autor de vanguarda, não teve tempo suficiente para assistir à própria profecia: ‘A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico’”, comenta Lira.

Capa de 'Oswald de Andrade: Mau Selvagem', biografia que será lançada em fevereiro de 2025 Foto: Divulgação/Companhia das Letras

Lira Neto indica três livros para conhecer a obra de Oswald de Andrade

  1. Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927) - É o livro de entrada à obra oswaldiana. A melhor edição é a que traz “autoilustrações do autor”, muito divertidas. São poemas com paródias, divertidos e livres. O volume foi considerado por Augusto de Campos como “possivelmente o mais belo livro de poesia de nosso modernismo”.
  2. Poesias Reunidas - Uma obra transgressora, na qual os versos se apropriam das técnicas de montagem das artes plásticas e do cinema, resultando em poemas com cortes rápidos, telegráficos.
  3. Seleta da Produção Jornalística - São textos de fácil decodificação, com notas que mostram as muitas batalhas e brigas em que ele se envolveu. É possível encontrar em Obra Incompleta (Edusp), dois volumes coordenados por Jorge Schwartz.

O que está confirmado para 2025

  1. Oswald de Andrade: Mau Selvagem - Biografia escrita por Lira Neto, que presenta o escritor em sua verve sarcástica, lírica e demolidora. O autor demonstra como a velocidade das transformações na paisagem urbana de São Paulo no início do século 20 se refletiram e foram refletidas na vida e na obra de Oswald. As amizades construídas e desfeitas de forma tumultuosa, os amores sempre turbulentos, a mitografia pessoal estabelecida em relatos memorialísticos. Já em pré-venda, o lançamento oficial previsto pela Companhia das Letras acontece em 11 de fevereiro.
  2. Pau Brasil - Edição comemorativa do centenário do lançamento da obra, sob coordenação da professora universitária, pesquisadora e tradutora Gênese Andrade. É considerado um dos mais importantes livros do modernismo brasileiro, pois propõe uma nova linguagem para a literatura nacional com poemas que procuram se aproximar da língua falada. Curiosamente, em 1928, Oswald, já seduzido pelas ideias comunistas, rejeita esse tipo de poesia, reduzindo-a à obra de um “brasileiro à-toa na maré alta da última etapa do capitalismo”. Previsto para o segundo semestre, pela editora Unesp.
  3. O Meridiano da Devoração: Ensaios sobre a Hipótese Antropofágica - Professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina, Alexandre Nodari prepara um conjunto de ensaios, alguns já publicados, mas retrabalhados e ampliados, além de inéditos, sobre diversas facetas da Antropofagia: a jurídica (a teoria de Oswald da posse contra a propriedade), a psicanalítica (a transformação do Tabu em totem), a econômica (a noção de interesse e participação na Antropofagia), a biológica. E ainda um capítulo sobre a presença (ou ausência) indígena no movimento antropófago. Lançamento pela n-1 edições, ainda sem data prevista.
  4. Ocupação Oswald de Andrade - Em cartaz no Itaú Cultural, reúne manuscritos de Oswald, edições históricas dos seus livros e periódicos que organizou, cartas, fotografias e outros materiais que apresentam sua vida e obra. Entrada gratuita, até 23 de fevereiro.
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