A obra da escritora Hilda Hilst tem recebido nos dois últimos anos, desde que foi homenageada pela Flip, especial atenção de editores e leitores. Hoje faria 90 anos. Sabe-se lá qual seria sua reação se estivesse viva. Indiferença? É possível. Desde que a leitura de Kazantzakis a conduziu para uma vida mais simples, distante dos centro urbanos, em 1964, a reclusão lhe pareceu a escolha mais acertada. Em 1966, já morando na Casa do Sol, que construiu em Campinas e onde viveu até os 73 anos, em 2004, Hilda Hilst passou a ser vista como uma mulher excêntrica, que falava com fantasmas, como a sexagenária Hillé, personagem de seu livro A Obscena Senhora D. (1982), que vive sob o vão de uma escada.
Numa polifonia de vozes fantasmagóricas – a do marido morto, dos vizinhos–, o delírio de Hillé traz para o mundo dos vivos o esposo Ehud, um espírito que tenta barrar o avanço da loucura da mulher, obcecada pela busca do sagrado. Mas, ao lado dessa devoção mística emerge uma força dionisíaca, passional, que marcaria toda a obra de Hilst, dos poemas às peças teatrais, passando por suas crônicas e textos longos. Foi assim desde o primeiro livro de poesia, Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, lançado em 1974. A escritora, então, já era aclamada no teatro. O Verdugo (1969), peça que ganhou o prêmio Anchieta, desafiou a censura do regime militar ao dar voz a um personagem que questiona a existência de Deus num mundo em que crianças se prostituem para não morrer de fome, tema que ela voltaria a abordar no polêmico O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990).
Nesse “caderno” amoral, deliberadamente provocativo, o ressentimento de Hilda por ser uma poeta pouco lida é projetado na figura do pai de Lori Lamby, um escritor sério que não consegue sucesso financeiro. Sem saída, ele se vê obrigado a escrever textos eróticos para sobreviver – curiosamente, o cineasta norte-americano Hal Hartley transferiu para uma freira essas mesmas características, e ela passa a produzir textos pornográficos (no filme Amateur, realizado quatro anos depois, em 1994). Voltando ao livro de Hilst, o fiasco do pai é também o fracasso da filha, como nas tragédias gregas. A garotinha do livro acaba se prostituindo.
O que teria levado Hilda Hilst, depois de três décadas de escrita refinada, autora de uma poesia hermética em busca do numinoso, como Adélia Prado, com quem foi várias vezes comparada, a escrever obscenidades? Chocar burgueses escandalizáveis? Atrair editores despudorados?
Hilda respondia a essas questões dizendo que até suas obras consideradas obscenas dizem respeito à busca do sagrado, de algo maior que a vida. Essa dimensão metafísica daria, segundo a escritora, um sentido à sua poética: “A minha literatura fala basicamente desse inefável, o tempo todo”. Educada num colégio de freiras, ela teria a curiosidade da tal freira de Hartley que, virgem, busca nas revistas e vídeos pornográficos inspiração para escrever seus livros eróticos?
“Mesmo na pornografia, eu insisto nisso”, dizia a escritora. “Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus”.
Numa tese de Goimar Dantas de Souza, que estuda a linguagem poética de Hilda Hilst e Adélia Prado, o autor analisa como as autoras “empregam a carnavalização do Divino”, enfocando a influência de ritos e da Escrituras Sagradas na literatura de ambas. Trata-se de uma religiosidade quase bárbara, original, em estado bruto, como a de Pasolini, sem submissão às instituições consagradas. A palavra, em si, é sagrada. Tudo é sagrado: a poesia, o sexo, a filosofia. Kierkegaard é tão importante para ela como Agostinho e os santos místicos. Conclui-se que sua forma de falar de Deus não cabe num manual de boa literatura. Traduzida em vários países, Hilda Hilst é hoje, a exemplo de Clarice Lispector, uma das vozes desafiadoras que podem ecoar, aos ouvidos de alguns, como profanas. Mas loucos e santos têm algo em comum: ambos dizem não à insanidade do mundo.
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