Não é de hoje que George Orwell está em alta. Pelo menos desde 2016, seus livros voltaram ao topo das listas de mais vendidos, apontando para uma busca na ficção por respostas sobre a realidade. Agora, antes de sua obra entrar em domínio público em janeiro, novas edições de suas obras chegam às prateleiras: uma nova tradução de A Revolução dos Bichos (agora traduzida como A Fazenda dos Animais, fiel ao original Animal Farm) com rica fortuna crítica, e também uma versão inédita em quadrinhos de 1984.
A Companhia das Letras lançou a edição especial de A Fazenda dos Animais com tradução de Paulo Henriques Britto e organização do professor de literatura comparada da USP, Marcelo Pen; uma seleção de ensaios, Sobre a Verdade, traduzida por Claudio Alves Marcondes; edições da Penguin Companhia de A Fazenda dos Animais e 1984; e a adaptação inédita do quadrinista paulistano Fido Nesti.
Um destaque da nova edição de A Fazenda dos Animais é o posfácio do organizador, explicando a trajetória do livro, traduzido para 70 idiomas e um dos maiores best-sellers mundiais de todos os tempos. Pen associa ao livro uma “apropriação retrógrada”, ou seja, uma leitura crítica reducionista que resume o enredo a um ataque ao regime soviético, ou propaganda anticomunista. É bom lembrar que Orwell se definia como um “socialista democrático”, e que boa parte dos seus escritos, especialmente da fase madura, carrega essa posição política.
Mesmo assim, o livro foi usado para fomentar uma guerra ideológica sem precedentes. Um braço extra oficial da CIA, a agência de inteligência do governo dos Estados Unidos, comprou os direitos do livro logo após a morte de George Orwell (em 1950) e desenvolveu o primeiro longa-metragem em animação da Grã-Bretanha, além de comprovadamente ter se envolvido na tradução do livro para mais de trinta idiomas, entre eles o português.
Pen explica que não encontrou nenhum documento vinculando a CIA à edição brasileira do livro, de 1964, mas a tradução foi patrocinada pelo Instituto de Pesquisa Social, o IPES, uma instituição privada liderada por empresários com objetivos políticos. O livro foi “impulsionado menos por um critério comercial ou mesmo literário do que por sua aura de arma psicológica anticomunista”, escreve.
O Grupo de Publicações/Editorial do Ipes era comandado por Rubem Fonseca, e estudos apontam que, ainda em 1963, o instituto já havia distribuído mais de 2,5 milhões de livros. Sobre o caso de Animal Farm em específico, o livro viria a ser traduzido pelo então tenente do Exército, Heitor de Aquino Ferreira, que mais tarde seria assistente pessoal do ex-presidente Ernesto Geisel durante a ditadura militar. A palavra “revolução”, usada no título dessa versão, que se manteve até agora como a mais difundida no mercado editorial brasileiro e segue no catálogo da editora, não aparece no original; no novo posfácio, Pen identifica algumas sutis escolhas de tradução discutíveis, mas reconhece o trabalho sério do tradutor.
Mas há efeitos na publicação do livro com essa intenção? Ele funcionou como propaganda anticomunista? “Para responder a essa questão, carecemos de pesquisa”, explica Pen ao Estadão. “Havia, no IPES, um setor de estudos, criado justamente para pensar e eventualmente investir nessas publicações, nesses lançamentos. Eram estratégias planejadas, discutidas e depois postas em prática por um mecanismo muito eficaz de divulgação e propaganda. O livro, como indico no posfácio, não vendeu grande coisa no lançamento, mas depois, a exemplo da trajetória da obra no mundo, fez um imenso sucesso. Se o êxito serviu para os propósitos de propaganda, não sei dizer. Só sei que houve os propósitos.”
Além de um ensaio visual inédito da artista Vânia Mignone, a edição também traz diversos textos críticos, de escritores e pesquisadores como Edmund Wilson, Northrop Frye e Alex Woloch, entre outros.
“Nos anos 1960, quando Mario Vargas Llosa, por exemplo, escrevia que a ‘literatura é fogo’, no sentido de não conformismo e rebelião, capaz de mudar a vida, imaginava-se que esse espírito revolucionário poderia ser conduzido pela literatura latino-americana do Boom e também por muitos autores brasileiros”, explica ainda o professor. “Olhando para o aparato do IPES/Ibad e o que eles planejaram, propuseram e realizaram, podemos ver que, também no campo oposto, atribui-se à literatura um grande poder, mas, na perspectiva deles, no sentido do conformismo e da regressão. Se houve um grande investimento no lançamento e tradução de livros e impressos é porque realmente se acreditava no seu poder como arma ideológica. O livro de Orwell foi traduzido e lançado dentro desse espírito.”
1984 em quadrinhos
A outra grande obra do escritor britânico ganha agora também uma versão inédita em quadrinhos, feita pelo artista paulistano Fido Nesti. A editora – que também capitaneou, em 2018, um quadrinho de A Revolução dos Bichos, feito por Odyr – já vendeu os direitos do livro para 12 países, alguns lançados quase que simultaneamente à versão brasileira. Feito com nanquim e colorizado digitalmente, o livro também usa a experiência pessoal do quadrinista em Londres, onde morou por um ano e onde se dá a trama de 1984. Ele explica que buscou a visão de Orwell quando o livro foi escrito (em 1948), e não o agora passado real do ano do título da obra.
“Eu li o livro pela primeira vez em 1984 mesmo”, conta Nesti. “Não lembro exatamente o que me ligava ao livro na época, era um finalzinho da ditadura militar, lembro das capas de jornais com a cara dos militares. A leitura meio que soou um alarme em mim, para eu ficar mais esperto sobre o que estava acontecendo.” Foram um ano e oito meses de trabalho para Nesti, que releu o livro em 2018 e sentiu que seus paralelos com a realidade se fortaleceram nos últimos 36 anos.
“A revolução tecnológica mudou tudo. Hoje, há uma perda da privacidade, estamos com o celular na mão o tempo todo, ele ouve o que você fala e oferece produtos, fica jogando fake news, não se sabe mais o que é verdade ou não é, são experimentos com países inteiros”, diz, ressaltando aspectos sugeridos no livro. Ele conta que uma pergunta que tem recebido de jornalistas do mundo é sobre a atualidade do livro. “Me perguntam se no Brasil também sentimos que é 1984 de novo”, diz o quadrinista.
Com ou sem paralelos com o presente, o quadrinhos serve como uma bela porta de entrada ao universo orwelliano.
Novas traduções
Algumas editoras já preparam novas edições para o ano que vem. A Globo vai lançar 1984 e A Revolução dos Bichos, e a Nova Fronteira se prepara para lançar em março uma versão em HQ de 1984, assinada pela dupla francesa Sybille Titeux de La Croix e Amazing Ameziane. Antofágica, L&PM, Novo Século e Autêntica também preparam suas versões. Mas por enquanto, quem edita Orwell no Brasil é apenas a Companhia das Letras, e estes são os novos lançamentos:
1984 (Edição Especial)
- Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner
- 408 págs., R$119,90 / R$44,90
1984 (Coleção Penguin Companhia)
- Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner
- 392 págs., R$24,90
1984 (Edição em Quadrinhos)
- Autor: Fido Nesti
- 224 págs., R$84,90 / R$39,90
Sobre a Verdade
- Tradução: Claudio Alves Marcondes
- 208 págs., R$39,90 / R$29,90
A Fazenda dos Animais (Edição Especial)
- Organização: Marcelo Pen
- Tradução: Paulo Henriques Britto
- 248 págs., R$89,90 / R$39,90
A Fazenda dos Animais (Coleção Penguin Companhia)
- Tradução: Paulo Henriques Britto
- 136 págs., R$19,90
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