O imbróglio em torno de quem pode ou não traduzir os poemas da ativista norte-americana Amanda Gorman traz à tona uma série de questões, muitas das quais já vêm sendo discutidas há algum tempo, e outras apenas recentemente. Todas, contudo, seguem sem uma resposta pronta, fácil ou consensual.
O tradutor, na prática, dificilmente (se não nunca) conseguirá repetir ipsis litteris o escritor em outra língua. Aliás, o tradutor não é alter ego do autor por mais que conheça a língua de partida, a sua cultura e a sua biografia. A esse respeito, vale lembrar que nem mesmo os autores que se autotraduzem se repetem, pois, em primeiro lugar, quando se releem já não se veem como autores do texto, mas como seus leitores (a teoria da “morte do autor”, parece-me, já está consagrada). Se, como dizem, o tradutor é o leitor ideal, sabe-se que ele “tem uma capacidade ilimitada de esquecer”, por isso está sempre reinventado o texto, como afirma Alberto Manguel. Obviamente, há uma ética e uma medida para essa recriação, das quais nenhum tradutor sério se afastará. O que não se deveria, a meu ver, é lançar sobre o tradutor uma maldição que o transforme na figura mítica de Eco, que perde até mesmo o timbre de sua voz, ficando condenada a reverberar a fala dos outros como uma rocha, ou seja, algo impessoal – acaba, assim, não conseguindo se comunicar mais. Claro que a escolha de um tradutor para Gorman leva em conta algo político de extrema importância: dar preferência a uma voz negra, mais apropriada à postura ativista da poeta, embora, pelo que se sabe, ela não tenha reprovado nenhum dos tradutores que até agora se dispuseram a traduzi-la, mas foram “dispensados” da empreitada por pressão externas. Essa discussão, embora importante, não deveria eclipsar a obra de Gorman ou de qualquer outro escritor. As duas discussões – sobre a obra e sobre o tradutor – deveriam ocorrer lado a lado, sempre tendo em mente que, sem a tradução, a voz da poeta não será ouvida por uma boa parte dos leitores não falantes da língua inglesa, os quais, talvez, antes mesmo de conhecer a escritora, passem a discutir a escolha de seu tradutor. Muitas editoras brasileiras já vêm refletindo sobre essa questão e têm dado preferência, quando se trata de traduções de autoras ou autores negros, a tradutoras ou tradutores também negros. Essa escolha tem a ver com a questão política, mas não só com ela; muitos dos nomes que assinam as versões dessas obras para o português são especialistas nas escritoras ou escritores traduzidos e/ou nos temas abordados. Esse é o caso de Lubi Prates, que traduziu a poesia completa de Maya Angelou; de Stephanie Borges, que traduz, entre outras, Audre Lorde; de Jess Oliveira, tradutora de Memórias da Plantação, de Grada Kilomba, etc. Por outro lado, a escritora feminista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie foi traduzida para o português por algumas mulheres brancas, entre as quais, Julia Romeu e Denise Bottmann, e sabe-se que o feminismo negro tem suas especificidades. O fato de essas traduções terem sido assinadas por essas tradutoras não significa, porém, que elas não tenham valor ou que não foram devidamente vertidas para a nossa língua. Aliás, graças a elas, e também ao interesse da editora na publicação de determinados títulos, o leitor pode ter acesso às ideias da escritora. Seguindo a lógica da polêmica em torno da tradução dos poemas de Gorman, as obras de escritoras feministas deveriam ser traduzidas apenas por mulheres. Devo recordar que a obra de Virginia Woolf, por exemplo, vem sendo traduzida por homens e mulheres por aqui. É através da tradução, entre outros, de Hélio Pólvora, Jorio Dauster, Raul de Sá Barbosa, Mario Quintana e Tomaz Tadeu da Silva, o qual, especialmente, vem se dedicando com afinco à tradução de importantes obras da escritora inglesa. Essas traduções me parecem tão eficazes quanto aquelas assinadas por Lya Luft, Cecília Meireles, Denise Bottmann... Partindo da premissa de que o tradutor deva pertencer à mesma etnia, ter as mesmas posições políticas e ser do mesmo sexo do autor, o que faremos com as traduções de Woolf assinadas por homens? E o que faremos com as traduções de autoras negras brasileiras traduzidas por homens no exterior? Imagino que, em 1962, um pouco da vida das mulheres nas favelas brasileiras tenha ganhado destaque para os falantes da língua inglesa em parte por causa da tradução de Quarto de Despejo (Child of the Dark), de Carolina Maria de Jesus, assinada pelo jornalista David St. Clair. Essa tradução impulsionou novas traduções da escritora brasileira e estudos sobre a sua obra. A propósito, as obras de escritores podem ser traduzidas por mulheres? Será que traduzir James Joyce e Marcel Proust é trabalho só para homens brancos? Espero que logo os poemas de Amanda Gorman sejam traduzidos para o português e que ela não permaneça em silêncio por muito mais tempo por aqui.PROFESSORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
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