O livro Outono de carne estranha, de Airton Souza, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2023, está no centro de um debate sobre a continuidade e imparcialidade da premiação. Conforme revelado pelo Estadão, as inscrições para a edição de 2024 já deveriam estar se encerrando, mas o edital sequer foi lançado.
A entidade afirma que a demora se dá pela necessidade de ajustes ainda em discussão e para a inclusão de uma nova categoria, de poesia, este ano. No entanto, nos bastidores, fala-se em mudança no regulamento na tentativa de censura prévia, boicote e demissões desde que Airton leu um trecho do romance no Sesc Paraty, em novembro, durante um evento na programação paralela da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). O Grupo Editorial Record, parceiro desde o início, em 2003, e que lança os livros vencedores, cobra a entidade por transparência e ameaça deixar o projeto caso a situação não seja esclarecida. ENTENDA A HISTÓRIA COMPLETA AQUI.
Outono de carne estranha conta a história de um relacionamento homoafetivo entre dois garimpeiros na Serra Pelada, no Pará, nos anos 1980. A partir do romance proibido, o autor narra a realidade do que foi o maior garimpo a céu aberto do mundo e mostra o preconceito e o poder do Estado no local.
Ao Estadão, Airton disse que está “assustado” com a repercussão e com o desenrolar da situação desde a leitura que fez na FLIP. “Também sinto uma frustração porque o Prêmio Sesc era um grande sonho, principalmente pelo acesso a publicar por uma grande editora. Era a minha oportunidade de ter acesso a isso, às livrarias, de ser comercializado em plataformas do País inteiro”, disse.
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“Ver o livro ser atacado dá uma frustração porque é um romance, uma história, como qualquer outra que pode falar sobre qualquer coisa. A literatura é para isso: contar histórias sobre a vida, o cotidiano, as religiões, sobre a história desse País”, completou.
Por que Outono de carne estranha incomodou?
Airton, escritor e professor de história, de Marabá, no Pará, define Outono de carne estranha como um livro de denúncia sobre o que aconteceu no garimpo de Serra Pelada. “Houve um processo migratório para a região que causou muitos problemas, como a pistolagem, os assassinatos durante aquele período e a disputa por terras que se acirrou na região.”
Ele completa: “Mas, principalmente, tem como objetivo denunciar o que o Estado brasileiro promoveu e vinha promovendo desde a ditadura militar no Brasil como um todo. A ditadura da Serra Pelada é emblemática porque é como se fosse a constituição de um país a parte do que estava acontecendo na história brasileira. Você tem aqui um sujeito interventor em nome do governo federal que manda na região e, principalmente, no garimpo. Eu queria mostrar um pouco do que a história oficial não mostrou”, disse.
Para ele, o relacionamento entre os dois protagonistas é “uma prova de resistência” a esse sujeito interventor e aos problemas que se instauraram na região. “Queria expor um pouco daquilo que eu venho chamando de ferida aberta. Os garimpeiros ainda estão lá, envelhecidos e tentando reaver todo o prejuízo histórico que tiveram com muitas coisas que aconteceram no garimpo e ainda estão sendo silenciadas pela história brasileira.”
E por que essa história incomodou? “Porque o País é extremamente racista, homofóbico e machista. Você coloca isso em debate com um romance como esse e coloca em xeque essas visões de mundo problemáticas que são, em primeiro lugar, criminosas, que promovem violência e mortes de homossexuais, mulheres, jovens negros, pessoas pobres”, respondeu.
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Por que Outono de carne estranha mereceu o prêmio, segundo os jurados
Até 2023, os vencedores do Prêmio Sesc eram escolhidos por um júri independente que não é divulgado até o fim das inscrições. Nesta última edição, os escritores Joca Reiners Terron e Suzana Vargas foram os jurados da categoria romance e Giovana Madalosso e Sérgio Rodrigues, da categoria contos.
Terron, ao Estadão, afirmou que o livro chamou a atenção por sua “linguagem barroca e pelo lirismo, além da força das imagens”. O autor de Onde pastam os minotauros, um dos destaques literários de 2023, disse ainda que “a ambientação de um romance não se dá somente pela descrição, mas também pelo uso do jargão, do ruído característico do garimpo”.
“Essa qualidade se estendeu às cenas de sexo homoafetivo, que aparentemente despertaram o repúdio dos diretores do Sesc presentes na leitura em Paraty. No entanto, as descrições feitas pelo Airton Souza são sensoriais e comoventes, algo raro na literatura. Em geral os autores têm dificuldade de escrever cenas de sexo convincentes”, completou.
O livro mereceu ganhar o prêmio por sua qualidade literária acima dos demais concorrentes, e por nenhum outro motivo mais. Foi escolha unânime minha e de Suzana Vargas, que compôs o júri final da categoria romance comigo.
Joca Reiners Terron
Já Suzana Vargas ressaltou que a obra trata de um “assunto pouco ou nada explorado na ficção brasileira”. “O leitor tem o privilégio de visitar por dentro as mazelas, as condições insalubres, a barbárie nas quais vivem ou sobrevivem os homens que ali trabalham, imersos em ganância e fanatismo”, disse.
A escritora, que tem 16 livros publicados, disse que o que atraiu o júri foi “o poder de fabulação do autor, o cenário pouco explorado e a sobrevivência de um amor que ainda hoje causa espécie às camadas mais conservadoras, tudo isso sem abandonar um lirismo pungente capaz de construir cenas memoráveis”.
Ela aponta que o romance causa desconforto “a leitores mais conservadores somente em algumas cenas”, mas que considera importante dizer que a “a literatura tem o papel de incomodar, remover o entulho moralista e autoritário de que muitos somos feitos para nos abrir à diferença e à diversidade”.
O que os jurados dizem sobre a situação atual do Prêmio Sesc?
Joca Terron ressalta que o diferencial do Prêmio Sesc de Literatura é o sistema de avaliação, “no qual a anonimidade tanto dos autores quanto do júri é rigorosamente mantida”. Ele explica que, como jurado final, não teve acesso aos nomes dos jurados das etapas anteriores. Destaca, ainda, que o prêmio revelou artistas que vieram a construir grandes carreiras ”Como sempre digo, os prêmios também precisam se premiar, ao escolherem obras relevantes de nosso tempo. Isso quase nunca acontece”.
O escritor também comentou a demissão do funcionário do Sesc que estava à frente do prêmio desde seu início. “A covardia institucional e rigorosamente subjetiva, baseada em sabe-se lá quais preconceitos que levaram o Sesc nacional a demitir Henrique Rodrigues, o curador do prêmio, é reacionária e merece repúdio. Um instante de carolice de um burocrata qualquer leva por terra um trabalho essencial de 20 anos”, disse.
“Muito me surpreende a forma como o Sesc recebeu nossa escolha, até porque sempre esteve na vanguarda das produções brasileiras. Espero que revejam sua posição sob pena de passarem como censores à história da cultura brasileira”, completou Suzana.
Em entrevista ao Estadão, publicada nesta terça, 5, Janaína Cunha, diretora de Programas Sociais do Departamento Nacional do Sesc, afirmou que a lisura do prêmio será mantida, e confirmou que o regulamento está passando por revisão e discussão. Leia aqui.
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