THE WASHINGTON POST - Contra as hordas bronzeadas de vigaristas, canalhas, donzelas, egomaníacos e nepo babies de Hollywood, Tom Hanks se destaca como um guerreiro investido de decência e bondade. Duas vezes vencedor do Oscar e com filmes arrecadaram US$ 10 bilhões, Hanks é a personificação viva de nossas esperanças de que caras legais tenham um final feliz.
Por mais de 40 anos - no palco, na TV e na tela grande - Hanks trabalhou como ator e produtor. Ele ainda se lembra de como era suar por atenção e sabe como fugir dos paparazzi. Fez parceria com os maiores impulsionadores e agitadores da indústria e foi atendido pelo exército de assessores e assistentes pessoais que trabalham nas sombras para manter as estrelas brilhando.
Com que facilidade Hanks poderia ter publicado um livro de memórias detalhando suas décadas de experiência: imagine as possíveis anedotas sobre Ron Howard, Sally Field, Meg Ryan, Denzel Washington, Julia Roberts, Steven Spielberg, os irmãos Coen e qualquer outra pessoa que seja ou tenha sido alguém no entretenimento contemporâneo. Talvez um dia tenhamos acesso a esse livro de memórias, mas é improvável que venha a ser tão encantador ou espiritualmente revelador quanto seu romance de estreia, que tem um título zombeteiro: The Making of Another Major Motion Picture Masterpiece (algo como Os Bastidores de Mais uma Grande Obra-prima do Cinema).
Como seria de esperar de um autor tão amável, não se trata de uma história ambientada na Hollywood tóxica de Harvey Weinstein. Até onde posso dizer, o livro de Hanks não é um roman à clef ou uma camuflagem reveladora ou um ato astuto de vingança disfarçada. Em vez disso, é um romance em tons pastéis, como se o negócio dos filmes tivesse Lake Wobegon como sede. Exceto por alguns acenos ao sexismo arraigado, os abusos bem documentados da indústria são elididos em favor da concentração nos melhores anjos de sua natureza. Com alguma sorte, o próximo romance de Hanks será sobre Washington, D.C.
The Making of Another Major Motion Picture Masterpiece começa suavemente, até lentamente, na voz de Joe Shaw, professor de cinema em Bozeman, Montana. Por meio de uma série de reviravoltas improváveis - que é a trajetória de quase tudo nessa história - Shaw atraiu a atenção de Bill Johnson, um dos roteiristas e diretores mais bem-sucedidos do país. Durante a pandemia de covid-19, Johnson convida Shaw para observar as filmagens de seu próximo projeto para escrever “um livro para explicar a realização de filmes”.
Hanks sabe muito sobre o comportamento dos atores, mas felizmente sabe muito pouco sobre a escrita de acadêmicos, então seu romance é misericordiosamente diferente de tudo que um professor de estudos de cinema escreveria. Shaw conta o resto da história como narrador onisciente, movendo-se habilmente de cena em cena e explicando o jargão da produção para o público leigo.
Mas, antes de chegarmos perto do set de filmagem - ou dos dias atuais -, Shaw apresenta o que é essencialmente uma novela de 70 páginas ambientada em 1947.
Somos apresentados a Robby Andersen, um doce garotinho que vive na doce cidade de Lone Butte, Califórnia. Robby idolatra seu tio errante, que ficou traumatizado por servir como bombeiro na Segunda Guerra Mundial. Quando Robby finalmente se torna um criador de quadrinhos de sucesso, uma de suas histórias é sobre a terrível experiência do tio no Pacífico. Décadas depois, a história em quadrinhos de Robby - habilmente enxertada nas páginas do romance - serve de inspiração para um personagem do novo filme de super-herói de Bill Johnson, Knightshade: A Forja de Firefall.
Essa longa seção de abertura, intitulada “Material de origem”, exige muito investimento emocional em pessoas que só veremos muito depois. Alguém se pergunta se um romancista de estreia menos famoso teria conseguido tanto espaço na passarela.
Mas, assim como Hanks, estou divagando.
O importante a saber é que The Making of Another Major Motion Picture Masterpiece acaba por fazer outra grande obra-prima do cinema. E é uma história muito envolvente, fortemente ligada a uma programação propulsiva de 53 dias que não deve ser alterada. “Uma parada qualquer na filmagem é um desastre”, como todos sabem. “Um pecado profano”.
O filme que Johnson e sua equipe estão produzindo - parte de uma franquia de bilhões de dólares - nunca entra em foco, exceto por algumas cenas isoladas. Não importa. A história é sobre o que acontece por trás das câmeras. Hanks se esforça para nos convencer de que a produção de filmes é um processo tortuoso que envolve uma vasta rede de pessoas - algumas famosas, a maioria não - dando o melhor de si. Definitivamente, não é um romance sobre a magia do cinema: é um romance sobre o trabalho árduo de fazer filmes. De fato, qualquer crença na magia - ou em genialidade e destino - é destruída no final. Apenas três qualidades importam: talento, determinação e, principalmente, pontualidade.
A marquise vai brilhar com um nome, mas nesses capítulos não há hierarquia: “Em algum momento, e não há como saber quando é esse momento, alguém fica responsável por todo o filme”, nos dizem. “Todo mundo tem o trabalho mais importante do filme”. Johnson, o diretor de Hanks, é bem desenhado, mas recebe menos atenção do que os membros da equipe que fazem de tudo, desde escalar atores até preparar sanduíches.
Allicia Mac-Teer, produtora afro-americana conhecida na indústria como Al, é o verdadeiro poder por trás do trono. Mas anos atrás ela era apenas uma gerente de recepção no hotel Garden Suite Inn perto do aeroporto de Richmond. Lá, ela impressionou Johnson ao garantir que seu iogurte congelado favorito estivesse disponível tarde da noite. É o tipo de iniciativa indispensável que um grande diretor percebe. De alguma forma, Al sabia nos seus ossos que Hollywood não tem nada a ver com ser a mais bonita ou mesmo a mais talentosa. “Fazer filmes”, ela anuncia, “é resolver mais problemas do que você causa”. Assim nasce uma estrela.
Essa lição é tão importante para o romance - e, presumivelmente, para Hanks - que é essencialmente repetida na história de sucesso de Ynez Gonzalez-Cruz. Ela está lutando para sobreviver como motorista de táxi quando por acaso pega Al para uma viagem até a locação de Knightshade. Reconhecendo o espírito atencioso e solucionador de problemas de Ynez, Al a contrata como sua motorista permanente, depois como sua assistente pessoal. Se você está prestando atenção, sabe para aonde isso vai dar, mas isso não deixa o livro menos gratificante.
Embora o romance seja uma carta de amor para a indústria, não é só isso. Mesmo as estrelas mais glamorosas desse universo estão sujeitas às leis ordinárias da física. De fato, o pomposo ator que interpreta Firefall, um jovem chamado O.K. Bailey, é hilário. Ele exige panquecas de banana, “não panquecas com banana”; diz a sua linda e enojada colega de filme que eles só podem dormir juntos depois das filmagens; refere-se reverentemente ao seu “processo”; e anuncia ao elenco exasperado: “Não tenho ego”. Depois de décadas suportando artistas tão irritantes, Hanks parece ter se divertido muito escrevendo essa seção perversamente engraçada.
Não é spoiler revelar que Knightshade: A Forja de Firefall sobreviverá a O.K. Bailey - e também a stalkers, cônjuges ciumentos e até a morte prematura de um integrante do elenco. Mas o status de blockbuster não é predeterminado. Afinal, nos meses anteriores à estreia nos cinemas - ou no streaming - um filme é só “um bilhão de cacos de vidro que precisam ser montados peça por peça até virarem um espelho”. Quanto mais você vê Hanks criando essa superfície brilhante, mais difícil é tirar os olhos da história. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.