John Lennon conta que a canção How Do You Sleep, lançada em 1971, é embebida de ressentimento e endereçada ao também ex-Beatle Paul McCartney. Alright, música de 2015 do rapper Kendrick Lamar, nos revela o quanto ele estava ressentido e deprimido. A ruminação bem poderia ser sobrenome da professora Olive Kitteridge, personagem do livro homônimo de Elizabeth Strout que é magistralmente encarnada pela atriz Frances McDormand na adaptação da HBO para minissérie de TV.
Recentemente, a personagem Sandra Voyter, de Anatomia de uma Queda, eternizou no cinema seu discurso de confrontação do ressentimento do marido, Samuel Maleski: “Você reclama de uma vida que VOCÊ escolheu. Você não é uma vítima. De jeito nenhum. (...) Você é incapaz de enfrentar suas ambições e se ressente de mim por isso, mas não fui eu quem colocou você onde está. (...) Você escolhe ficar à margem porque está com medo!”
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Esses são fragmentos vindos de mágoas ficcionais ou autobiográficas, com as quais pode-se se identificar. “Grande coisa, dirão vocês: toda pessoa conhece o ressentimento, e, sendo tão comum, esse mal não pode ser tão grave para o próprio indivíduo nem para a sociedade”, interpela a francesa Cynthia Fleury em seu livro Curar o Ressentimento, lançado pela Bazar do Tempo e com tradução de Milena P. Duchiade.
Mas, assim como o bolor, o perigo se disfarça em presenças rotineiras. A tese principal de Fleury, que é psicanalista e filósofa, é que o ressentimento cotidiano não o torna inofensivo; muito pelo contrário: seu difícil tratamento e sua expansão para outras pessoas turbinam a ameaça que este sentimento representa para sistemas democráticos e à coletividade – segundo a autora, ele é o principal aliado do fascismo e de regimes totalitários, além de ter forte ligação com o conspiracionismo. A prevenção clínica e institucional, portanto, torna-se fundamental para a sociedade.
É na ruminação paralisante e insaciável que o ressentimento se apresenta, detalha a professora titular de Humanidades e Saúde no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris. Ensimesmada, a pessoa cultiva mentalmente uma expectativa perene de que o agravo que ela sofreu, causado ou atribuído a um culpado, vá ser reparado, sem que esta demanda seja por ela transformada em reação ou reivindicação. Parece uma passividade do sujeito, mas tem uma atividade nessa posição ressentimista (um neologismo de Fleury), já que há renúncia em agir. A ruminação é importante porque não se trata de simplesmente vivenciar a fratura, mas cuidar para que ela permaneça aberta e dolorida – há um investimento muitas vezes inconsciente por parte da pessoa.
Sentir ressentimento, em si, não é problemático. O que configura uma patologia e uma disfunção com reflexos sociais, segundo o livro, é a fixação nesta posição ressentida, de onde vem a noção de um “sujeito ressentimista”.
No “delírio vitimário”, a dívida, tão pessoal e intransferível, nunca é paga. “Delírio não no sentido de que o indivíduo não seria uma vítima – potencialmente, ele o é –, mas delírio porque ele não é, de forma alguma, a única vítima de uma ordem injusta”, explica. No ressentimento, a pessoa cristaliza uma identidade exclusivamente a partir do fato de que foi ou considera ter sido vítima, sem cogitar uma saída que passe pela responsabilização (que é diferente de culpa) por este cultivo ressentido. As injustiças, argumenta Fleury, lamentavelmente acontecem, e o desafio é “encarar a si mesmo como uma vítima de modo temporário”, de modo a criar destinos que ultrapassem o acontecimento doloroso.
Fica explícito, então, o posicionamento ético da autora anunciado no começo do livro: há uma aposta dela de que os sujeitos/pacientes possam fazer algo com o sofrimento que os acometem, mesmo que originado de uma injustiça ou das incertezas. Diante do ressentimento, o que ela recomenda é lutar contra ele, em vez de a ele sucumbir.
Para tanto, há uma distinção fundamental da amargura; nesta, o sujeito experimenta uma depressão, um sabor amargo bastante desagradável, mas que é transitório e não aprisiona. Pode ou não se tornar ressentimento. A diferenciação não aparece imediatamente no livro, mas o subtítulo da edição brasileira (“o mal da amargura individual, coletiva e política”), ainda que convidativo à leitura, acaba nublando a argumentação de Fleury.
“Um espaço incomensurável existe entre experimentar a amargura, o sentimento de humilhação e de indignidade, real, do qual se rejeita a permanência, e o fato de se considerar a si mesmo como a vítima expiatória universal, de colocar isso como um status”, descreve a filósofa. Em contraste com a amargura, o ressentimento sempre se traduz politicamente no ódio ao outro, sendo um convite às manifestações de violência que vemos na linguagem e nos corpos das pessoas escolhidas como alvos. O golpe ao outro, verbal ou fisicamente, é o vômito dos sujeitos rancorosos, ela continua.
Nisso a coletividade desempenha papel propício à covardia, uma vez que reúne pessoas ressentidas sob a incitação de que vingança é algo legítimo e lhes assegura não só um desaparecimento por trás da massa, como também um abrigo para a rejeição da responsabilidade como sujeitos. Desta forma, ilustra a autora, os haters liberam sua pulsão ressentimista escondida sob o anonimato das redes sociais, e aguardam, como em um ensaio, a hora de colocá-la em prática na massa, sem constrangimento.
Porém, não basta que o ressentimento, nascido como um mal-estar subjetivo, se externalize para fazer estragos na política e na esfera das relações públicas. A autora contextualiza que é necessário “estigmatizar um fora de si”, ou seja, encarnar no outro a causa do infortúnio de quem ataca. A partir do livro podemos visualizar essa estratégia no ódio direcionado aos negros, povos originários, mulheres, populações LGBTQIA+, judeus, palestinos e imigrantes, por exemplo.
Como prevenir o ressentimento
Para formular suas teses, Fleury parte de fundamentações teóricas, filosóficas e clínicas de nomes como Frantz Fanon, Nietzsche, Scheler e Wilhem Reich. Com seu livro, ela integra um debate muito frutífero proposto por pensadores como a psicanalista brasileira Maria Rita Kehl (autora de Ressentimento, republicado em 2020 pela Boitempo) e a filósofa norte-americana Wendy Brown sobre como o ressentimento atravessa a vida clínica e se torna uma categoria de análise política. A esta discussão se acrescentam as importantes análises do sociólogo Ruy Braga, sobre a centralidade das consequências da precarização do trabalho, e do professor titular do Departamento de Filosofia da USP Vladimir Safatle sobre o ressentimento como efeito, não como causa, de decisões eleitorais que ilustram o direcionamento à extrema-direita de expressiva parte da sociedade brasileira.
Fleury parece situar o ressentimento como causa, mas algumas passagens sugerem que ela veja nele uma explorada brecha para a instrumentalização política da intolerância, que nutre o quadro vitimário do ressentido ao mesmo tempo em que o ilude com a ideia de que há ali, finalmente, uma reação. “As ‘tremendas pulsões’ liberadas não produzem uma história viável para o indivíduo, e menos ainda do ponto de vista coletivo. Só produzem, finalmente, um ‘aviltamento comum’”, ela observa.
Sendo a psicanálise o principal paradigma de reflexão de Fleury, as pulsões têm destaque nas intervenções sugeridas. Como representantes dos estímulos corporais no psiquismo, e sempre direcionadas à busca de satisfação (o que não significa que o resultado seja prazeroso), elas são um desafio à vida social. Livrar-se das exigências pulsionais não é uma opção, Freud já dizia, mas ele sugeria que o amansamento, por meio do trabalho psicanalítico, talvez fosse o modo de lidar com elas.
A autora indica o caminho freudiano para cuidar da pulsão ressentimista: “ela pode nunca desaparecer completamente, e os afetos de rancor, inveja, ciúme, medo, cólera, recusa da frustração podem até ser conjugados com regularidade; no entanto, o sujeito que resiste ao ressentimento não é aquele que o desconhece, mas antes aquele que o amansa”.
Em um plano subjetivo, especialmente nas batalhas particulares que cada um experimenta, a força propositiva e transformadora do livro está explícita e transmite esperança: há algo para se fazer contra o ressentimento.
No plano coletivo, a prevenção não deve partir apenas do sujeito e jamais pode prescindir dos compromissos políticos e socioeconômicos de sustentação do viver – algo além da sobrevivência a que são submetidos os grupos mais vulneráveis. Mas há um gargalo sintomático. Se consideramos que as formas como alguém se torna sujeito, deseja e se relaciona não são desconectadas de como o plano social está estruturado, e pensando na adoção brasileira de um neoliberalismo cada vez mais exploratório e coisificador, o que temos é um alicerce convidativo ao amparo institucional, aos laços solidários e à partilha, ou competitivo, que inspira antagonismo e consumo?
Há espaço para o luto e para o mal-estar na vida, ou, em vez disso, uma propaganda enganosa de que a felicidade está ao alcance do esforço individual, sem que haja perdas e frustrações e ignorando condições de cidadania? Em outras palavras, neste campo coletivo que é a sociedade, a terra não parece bastante fértil para a contínua produção do ressentimento?
Curar o Ressentimento: O Mal da Amargura Individual, Coletiva e Política
- Autora: Cynthia Fleury
- Tradução: Milena P. Duchiade
- Editora: Bazar Do Tempo (232 Págs.; R$ 78)
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