Um destino incerto aguarda os escritores mais revigorantes e controversos: os insights que proporcionam ainda soarão como pungentemente originais se a desilusão que eles muitas vezes inculcam virar um lugar-comum?
Fiquei pensando nessas coisas enquanto lia o novo e peculiar livro de John Gray, Feline Philosophy: Cats and the Meaning of Life [algo como “Filosofia felina: os gatos e o sentido da vida”, em tradução livre], o mais recente de uma obra provocativa que se estende por quatro décadas e cobriu temas como Al Qaeda, capitalismo global e John Stuart Mill.
Faz tempo que Gray, filósofo britânico, é um dos maiores críticos do consenso neoliberal que emergiu ao fim da Guerra Fria. (Acontece que ele tem o mesmo nome de um autor de autoajuda americano, o que gera uma certa comédia não intencional sempre que alguém tem de explicar que o escritor de livros como Missa Negra: religião apocalíptica e o fim das utopias não é responsável pelo best-seller Homens são de Marte, mulheres são de Vênus).
Diante disso, Feline Philosophy pareceria um desvio - uma exploração divertida do que os gatos podem nos ensinar em nossa infindável busca para nos entendermos. Mas o livro, no verdadeiro estilo Grey, sugere que a própria busca pode estar condenada. “A consciência”, escreve ele, “foi superestimada”. Ficamos preocupados, ansiosos e infelizes. Nossa alardeada capacidade para o pensamento abstrato muitas vezes nos traz problemas (a nós ou a outros). Podemos ser a única espécie a empreender a investigação científica, mas também somos a única espécie que perpetrou genocídios conscientemente. Os gatos, ao contrário dos humanos, não se enganam, tentando acreditar que são salvadores e causando estragos no processo. “Quando os gatos não estão caçando ou acasalando, comendo ou brincando, eles dormem”, escreve Gray. “Não há angústia interior que os force a uma atividade constante”.
Em outras palavras, os humanos gostam de se considerar especiais. Mas o que nos torna especiais também nos faz - não raro - piores. Somos supremacistas humanos cuja vaidade, moralismo e atormentada ambivalência nos deixam singularmente infelizes e destrutivos. “Embora os gatos não tenham nada a aprender conosco”, escreve ele, “com eles podemos aprender a aliviar o fardo que vem com o ser humano”.
Gray já fez ampla menção a vários outros animais em seus outros livros, mas neste ele se concentra expressamente nos gatos. Por quê? Por um lado, ele claramente gosta da companhia dos felinos. Nos agradecimentos, ele agradece a quatro gatos, entre eles um de 23 anos chamado Julian. Além disso, ao contrário dos cães, escreve ele, “os gatos não se humanizaram”. Os cães foram domesticados para agradar a seus donos e preservar uma preferência lupina por uma matilha “unida por relações de dominação e submissão”. Os gatos não seguem “nenhuma das hierarquias estabelecidas que moldam as interações entre os humanos e seus parentes evolutivos”. Os gatos são “caçadores solitários” e vivem com uma “alegria destemida”.
Vivem mesmo? É complicado esse negócio de julgar saber que os gatos experimentam “alegria” e que esta alegria seria “destemida”. Gray admite que “não podemos saber o que é ser gato”, mas isto não o impede de tentar. Ele conclui que provavelmente os gatos achariam os humanos tão tolos quanto ele acha: “Se os gatos conseguissem entender a busca humana por significado, eles ronronariam de prazer diante de seu absurdo”.
Gray escreveu de forma tão brilhante sobre os perigos do antropomorfismo em seus outros livros que é surpreendente ver o exuberante antropomorfismo que ele aplica a este - só que, em vez de projetar qualidades humanas nos gatos, ele fala das qualidades felinas que gostaria que os humanos tivessem. Os liberais gostam de pensar que a empatia é uma grande virtude, diz ele, e que o progresso, mais que possível, é moralmente necessário. Mas as pessoas viveriam melhor se cultivassem uma indiferença felina.
Tudo muito bacana e bom para os gatos. Mas, se você quer outra opinião sobre a vida de gato ser assim tão exemplar e inofensiva quanto Gray faz parecer, pergunte a um pássaro. / Tradução de Renato Prelorentzou.
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Feline Philosophy: Cats and the Meaning of Life
John Gray
122 páginas. Farrar, Straus & Giroux. $24.
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