Revelada em 2012, ao concorrer ao Man Booker Prize, o mais prestigiado prêmio literário na Inglaterra, pelo título de estreia (A Improvável Jornada de Harold Fry, publicado pela Objetiva), a escritora e ex-atriz inglesa Rachel Joyce, de 53 anos, trata, em seu segundo livro, Operação Perfeito, de um tema caro a outros autores ingleses: o tempo. Nele, um garoto de 11 anos, Byron Hemmings, testemunha um acidente que vai mudar sua vida: a mãe, dirigindo numa estrada vicinal em dia de nevoeiro, atropela uma pequena ciclista e foge em disparada, omitindo a ocorrência ao marido, uma figura ausente na família, que passa a semana trabalhando no mercado financeiro em Londres e só ocasionalmente vê os dois filhos – Byron e sua irmã Lucy.
Paralelamente, Rachel Joyce, que integrou durante 20 anos a Royal Shakespeare Company, conta no livro a história de um homem maduro cuja vida foi uma sucessão de tragédias. Os dois dramas seguem em paralelo, mas o ponto de partida é o mesmo: o acréscimo (real) de dois segundos no tempo, em 1972, para compensar o movimento da Terra. Quarenta anos depois, esses segundos fazem toda a diferença na vida de Byron. A seguir, Rachel Joyce fala sobre o emocionante personagem que criou num livro que, dirigido aos jovens, é lido com prazer por adultos.
Certa vez você disse que não entendia a razão de escrever histórias nem sabia de onde elas vinham, mas Operação Perfeito parece ter um ponto de partida não fictício. É verdade?
É verdade que frequentemente não entendo por que me sinto compelida a escrever uma história até que eu a conclua. Para mim, escrever é um processo de desenvolver temas. Mas lembro perfeitamente quando a primeira ideia de Operação Perfeito veio a mim – na forma de uma experiência pessoal. Foi há 14 anos, após o nascimento de meu terceiro filho. Sem dormir direito, estava levando minha filha para a escola num dia de tráfego intenso. Então, tive um daqueles raros momentos de iluminação, quando se consegue ver a vida de uma perspectiva nova. Pensei que, se eu cometesse um erro ao volante, se alguém corresse na frente do carro ou qualquer outra coisa de ruim acontecesse, não teria a energia ou a presença de espírito para enfrentar a situação. Era assustador. Minha decisão de ambientar a história em 1972 veio mais tarde, ao começar a escrever o livro segundo o ponto de vista de um garoto de 11 anos, a idade que, então, eu tinha. Mais tarde descobri que dois segundos foram adicionados ao tempo em 1972. Foi um golpe de sorte. Ali estava eu, escrevendo sobre um momento crucial na vida, sobre um acidente que dura segundos, mas que leva a vida inteira para ser reparado. É interessante quando a história real converge para o mesmo ponto que a ficção.
Como disse um crítico a respeito de sua literatura, a Inglaterra é quase um personagem em seus livros – e a observação é bem pertinente, considerando a obsessão do personagem Byron pelo tempo. Por que o tempo é particularmente importante na cultura inglesa?
Não sei se os ingleses são mais obcecados pelo tempo que outros povos. Talvez sejamos, enfim. Um dos temas de meu livro é o questionamento daquilo que consideramos verdadeiro e imutável. Só porque não encontramos palavras para novas possibilidades não significa que elas não existam. Podemos, desse modo, ficar limitados pelas palavras. O tempo me interessa porque vivemos nossas vidas dependendo dele – e nisso os ingleses são mais reverentes às suas regras. Mas, às vezes, penso: podemos assegurar que o tempo segue adiante só porque inventamos o relógio? E se o tempo existir de uma forma mais complexa?
Você vem de uma experiência no teatro como atriz da Royal Shakespeare Company por mais de 20 anos. De que modo essa experiência lhe ajudou quando decidiu se tornar escritora?
Sempre tive interesse na escrita, em me expressar por meio da literatura, mas levei muito tempo para achar minha “voz” e decidir compartilhar meus textos. Representar é fazer uso daquilo que você sabe para imaginar coisas que você desconhece. Também é uma maneira de enfeitiçar o público com uma história que, mesmo que pareça um tanto artificial, possa convencer as pessoas de sua veracidade. Escrever, pelo menos para mim, é a mesma coisa.
Jim, o homem introvertido, gago e isolado de seu livro funciona como uma espécie de representação metafórica de todos os outsiders, fazendo lembrar um pouco a Briony de Reparação, a obra-prima de Ian McEwan. A exemplo de Briony, Jim não pode mudar o passado. Isso é para você o mais trágico da condição humana, viver com suas memórias sem chance de seguir em frente?
Não creio que seja impossível mudar, mas acho que para isso você tem obrigatoriamente de aceitar o passado. Se você lutar contra ele ou mesmo o negar, então isso significa que está preso a ele.
Operação Perfeito, paradoxalmente, é sobre a imperfeição – ou, pelo menos, sobre o alto preço da perfeição. Diana, a mãe, não consegue lidar com a realidade após o acidente de carro. O filho tampouco é capaz de controlar o tempo como imaginava que poderia. O que a perfeição significa para você?
Tenho suspeitas sobre a ideia de perfeição. Efetivamente, não vejo como é possível atingir a perfeição. De qualquer modo, trata-se de um estado de rigidez – e eu estou mais interessada na ideia de mudança. Diana, inicialmente, aparenta ser uma criatura “perfeita” com um lar “perfeito” e uma família idem, mas ela se torna mais interessante ao mudar e se distanciar desse modelo.
Todas as passagens de Operação Perfeito parecem decorrer de um fato que você testemunhou, como se os personagens fossem reais. Você passou por situações semelhantes?
Não posso lembrar de um incidente ou acidente que tivesse mudado a minha vida, mas vejo que a vida sempre nos surpreende. Você não sabe disso, essa é a verdade, pois também não sabe quando e como a vida vai mudar. E mudanças podem vir de maneiras banais. Quando meu pai morreu, eu estava comprando um buquê de suas flores favoritas. Não fazia ideia de que ele estava agonizando justamente naquela hora – e isso me traz de volta a questão do tempo: é possível que meu inconsciente já soubesse da morte de meu pai?
O pai, em Operação Perfeito, é apenas um visitante que vê os filhos de vez em quando. Você acha que a família nuclear está se transformando hoje numa outra entidade? Como os escritores ingleses contemporâneos lidam com esse tema da família depois da geração dos “angry men” dos anos 1960 – depois de John Osborne, para ser mais preciso?
Não posso falar pelo resto do mundo, mas, na Inglaterra, as coisas são mais saudáveis do que eram em 1972. Os homens se permitem um papel ativo no lar e as mulheres podem ser as provedoras da casa. É perigoso pensar em termos de estereótipos.
Leia um trecho da obra:
“Em 1972, dois segundos foram adicionados ao tempo. A Grã-Bretanha concordou em se juntar ao Mercado Comum, e Beg, Steal or Borrow, do grupo pop britânico New Seekers, foi a música selecionada para o Festival Eurovisão. Os segundos foram adicionados porque aquele foi um ano bissexto e o horário estava desencontrado com o movimento da Terra. O New Seekers não venceu o Festival Eurovisão da Canção, mas isso não teve nada a ver com o movimento da Terra, e nada a ver com os segundos também.
A adição do tempo deixou Byron Hemmings aterrorizado. Aos 11 anos, era um menino muito imaginativo. Ficou acordado, imaginando o acontecimento, e seu coração bateu feito asas de passarinho. Ele observou os relógios e ficou tentando pegá-los no flagra.
– Quando vai acontecer? – perguntou para a mãe.
Ela estava na frente da nova bancada de café da manhã, cortando uma maçã em quatro. O Sol da manhã entrava pelas portas francesas em quadrados tão nítidos que Byron conseguia ficar em pé sobre eles.
– Provavelmente quando estivermos dormindo.
– Dormindo? – As coisas eram ainda piores do que ele havia imaginado.
– Ou talvez quando estivermos acordados.
Ele teve a impressão de que ela não sabia a verdade.
–Dois segundos não são nada – disse ela, sorrindo.”
Operação PerfeitoTradução: Camila MelloEditora: Objetiva/selo Suma de Letras (303 págs., R$ 29,90)
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