No início dos anos 1940, o escritor Oswald de Andrade travou uma batalha verbal com o crítico Antonio Candido que, em sua coluna literária na Folha da Manhã, afirmou que a verdadeira literatura brasileira começou com a geração de 1930, excluindo assim a de 1922. Ao fazer uma análise comparativa entre sua geração e a que lhe sucedeu, Oswald refere-se aos jovens com ironia: “geração de meninos bonzinhos”, “produzem uma espécie de professorado primário do mundo em transformação”, “adolescentes de gabinete”.
Hoje, com a republicação de toda a obra de Candido (1918-2017) sob a chancela da editora Todavia, que desenvolveu um austero projeto gráfico, as palavras de Oswald (que se tornou grande amigo de Candido) se evaporaram. “Em muitos aspectos, é um crítico incontornável”, comenta o editor Flávio Moura, coordenador do projeto que terá um total de 17 livros, que serão lançados até o segundo semestre de 2024.
A primeira leva traz cinco obras: Formação da Literatura Brasileira (1959), Os Parceiros do Rio Bonito (1964), Literatura e Sociedade (1965), O Discurso e a Cidade (1993) e Iniciação à Literatura Brasileira (1997). “Já nesses trabalhos é possível observar a ambição pela síntese que marcou a carreira de Candido”, observa Moura. “Ele buscava refletir sobre o Brasil a partir da literatura. Candido começou como crítico nos anos 1940 e se formou na tradição da escrita literária como forma de pensar o País.”
De fato, em seu gosto pelo ensaio, produzido com uma escrita refinada e cristalina, Antonio Candido aliou um anseio por justiça social, densidade teórica e qualidade estética. “Ele exibia um domínio do repertório europeu e produziu ensaios fundamentais sobre a obra de autores estrangeiros, especialmente italianos, franceses e alemães, que traziam um panorama além das nossas fronteiras”, afirma Moura.
Ao mesmo tempo, Candido debruçava-se sobre a escrita de autores nacionais, como se observa em Iniciação à Literatura Brasileira, texto encomendado em 1987 por uma editora italiana, mas que não o publicou, o que só aconteceu dez anos depois por decisão do próprio crítico, a fim de auxiliar os jovens como “um complemento a textos mais substanciosos”, como ele mesmo observou.
“Ali, ele mostra como a literatura brasileira é um galho da portuguesa”, comenta Moura sobre uma particularidade da escrita nacional, também ressaltada pela pesquisadora e ensaísta Ieda Lebensztayn, autora de um ensaio que consta no livro e que apresenta a obra ao público leigo. “Candido observa que nossa literatura carrega a ambiguidade entre integrar o conjunto das literaturas ocidentais e trazer modificações conforme as condições do Novo Mundo”, observa ela sobre uma escrita derivada, ou seja, da passagem de colônia portuguesa até se transformar em nação, o Brasil apresentou uma literatura que, “com o tempo, desenvolveu seu timbre próprio e sua personalidade”.
Pela primeira vez, a obra de Candido estará disponível também em e-book, com preço acessível, permitindo que mais pessoas atestem a vitalidade da contribuição do crítico ao pensamento nacional.
Criado por Candido e grupo de universitários, ‘Suplemento Literário’, do Estadão, tinha meta de equilibrar tradição com inovação
Em sua tarefa de propagar a literatura brasileira, Antonio Candido foi um dos responsáveis pela criação de um espaço privilegiado para debate de ideias, surgimento de novos autores e revisão dos consagrados. Trata-se do Suplemento Literário, que começou a circular com O Estado de S.Paulo a partir de 6 de outubro de 1956. SL, como era carinhosamente conhecido o suplemento, tinha uma posição de equilíbrio entre tradição e inovação.
“A diretriz que norteou o plano foi a seguinte: São Paulo naquele tempo não tinha a densidade cultural do Rio, onde se concentrava o mais vivo da literatura e das artes”, disse Candido em entrevista ao Estadão em 2006. “A maior contribuição de São Paulo era a cultura universitária, mas não havia aqui revistas culturais importantes. Assim, era recomendável tentar uma espécie de equilíbrio entre o movimento vivo da literatura e das artes e a tonalidade mais estável dos estudos universitários. O SL foi uma tentativa de associar as duas dimensões de maneira criativa e acessível, fundindo o tom de jornal com o de revista.”
Além de Candido, também escreviam no SL outros jovens universitários como Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes e Gilda de Mello e Souza. E a diagramação do SL, moderna e arejada para a época, foi criada por Italo Bianchi, um italiano, filho de um escultor e de uma cantora lírica.
Candido comentou que o crítico literário de sua época era obrigado a lidar com nomes que, naquele momento, ainda eram desconhecidos. “Certo dia, recebi um livro chamado Perto do Coração Selvagem, assinado por Clarice Lispector. Pensei que fosse um pseudônimo. Eu não sabia quem era e precisava dizer se o livro era bom ou ruim. Ou seja, minha responsabilidade era muito grande, pois lidava com autores como Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, que ainda não tinham conquistado notoriedade. Tive a sorte de viver um tempo de esplendor da literatura brasileira. Mas avaliações erradas poderiam custar meu emprego.”
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