Patrícia Galvão (1910-1962) passou boa parte da vida em Santos - desde antes de ser Pagu. Nas férias durante a adolescência, visitava a cidade com a família e costumava atravessar o canal a nado. Quando, ainda menor de idade, forjou um casamento para poder sair de casa, foi na Serra do Mar que ela encontrou Oswald de Andrade e foi em uma pensão no Gonzaga que os dois, ainda amantes, passaram a primeira lua de mel. Em Santos, ela mergulhou na militância. Ali, foi presa pela primeira vez, em 1931. Dali, partiu para viagens - para a China, Rússia, França. E ali passou sua última década de vida e morreu, aos 52 anos, em 1962.
Inspirados pela pesquisa da escritora carioca Adriana Armony, que, em 2019, passou um tempo em Paris investigando como tinha sido a vida de Pagu lá entre 1934 e 1935 (e voltou com o romance Pagu no Metrô; leia aqui a entrevista com a autora na época do lançamento), descemos a Serra na companhia da própria Adriana e da cineasta Débora Gobitta, que cresceu em Santos, como a repórter, e vai adaptar o livro para o cinema. A ideia era visitar lugares marcantes da passagem de Pagu pela cidade.
Primeiro, uma breve história de Pagu
Ela nasceu no dia 9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista, e cresceu nos fundos de uma tecelagem no Brás, presenciando greves e manifestações. Chamada de ‘musa do Modernismo’, ela não participou da Semana de Arte Moderna, mas se tornou um importante nome do movimento. Ela, porém, trocou as “enfadonhas” reuniões de intelectuais com suas “polemicazinhas chochas” e suas “comédias sexuais”, como ela dizia, pelo chão de fábrica, pela vontade de agir e de fazer a revolução. Enfrentou o machismo e muitas provações. Militante da esquerda filiada ao Partido Comunista, lutou contra o autoritarismo no Brasil e fora. Usou diversos pseudônimos ao longo da vida. Foi presa 23 vezes.
Escreveu livros engajados e literatura, peças de teatro, poemas. Foi jornalista, cronista, tradutora e ilustradora. Casou com Oswald de Andrade, com quem teve Rudá (1930-2009), e depois com Geraldo Galvão, pai de seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz (1941-2013). No fim da vida, em Santos, para onde voltou em 1954, se engajou na causa da cultura e ajudou, sobretudo, no desenvolvimento do teatro local. Morreu vítima de câncer de pulmão.
Encontros e desencontros
Era um dia ensolarado e quente de inverno. Tendo como guia o livro Viva Pagu: Fotobiografia de Patrícia Galvão (Imprensa Oficial, 2010), um volume de quase 2,5 kg organizado por Lúcia Maria Teixeira Furlani e Geraldo Galvão Ferraz, chegamos à cidade numa manhã de fim de julho. Nossa busca por Pagu começou pelo fim.
Cemitério da Filosofia
Pagu foi enterrada no Cemitério da Filosofia em dezembro de 1962. Fundado em 1892, ele é um dos mais antigos da cidade. Sisínio, funcionário do local, estava de passagem na entrada do cemitério quando demos as coordenadas e perguntamos por que lado seguir, e nos acompanhou.
Ele olha uma rua, entra em outra, vai, volta. “Como é o nome da pessoa que vocês estão procurando?”, ele pergunta. “Patrícia. Patrícia Galvão”, respondo. Mais alguns segundos e: “Achei, aqui, olha, Patrícia Galvão”.
Caminhamos em sua direção. “Ah, não vai me dizer que é a Pagu! É a Pagu? Sério? Ela está aqui?”, pergunta, muito surpreso. E conta que conhece sua história, sabe que ela foi presa por sua militância, que viveu na Ilha das Palmas, ali na região. Trabalhando no local havia alguns poucos meses, ele ficou realmente feliz pela descoberta.
Pagu divide o jazigo 67 com seu último marido, Geraldo Ferraz, que também foi jornalista e escritor - e crítico de arte do Estadão. Ele morreu em 1979, 17 anos depois de Pagu. As fotos estão preservadas. A placa de cobre começa a ser apagada pelo tempo. Limo verde cobre a campa 57. Um vasinho de cada lado. Apenas o dele tem uma flor de plástico roxa, caída, que Adriana arruma.
Saímos confiantes de que encontraríamos pelo caminho outras pessoas como o funcionário do cemitério, que conhecia Pagu, e que voltaríamos com um mapa geográfico e sentimental de sua passagem pela cidade. Ledo engano. O apagamento da placa na campa era o indício do que encontraríamos - ou não encontraríamos.
Praça da República
Cenário da primeira das 23 prisões de Pagu. A Praça da República fica no Centro de Santos, junto à zona portuária, onde Pagu militava ao lado de estivadores e operários.
Era por volta de 19h do dia 23 de agosto de 1931 e os estivadores se reuniram no local para uma homenagem a Sacco e Vanzetti, imigrantes italianos e anarquistas acusados de homicídio nos Estados Unidos e executados em cadeira elétrica no dia 27 de agosto de 1927, depois de um processo polêmico e problemático. A convocação foi feita por meio da distribuição de panfletos no Porto e a polícia estava observando a movimentação desde cedo.
Pagu, então com 21 anos, começa seu discurso e a polícia tenta interrompê-la. Ela responde que não vai se calar porque é seu direito falar. O policial a pega pelo braço, para levá-la ao carro e encaminhá-la à delegacia. O ensacador de café Herculano de Souza intervém, quer ajudá-la. Com uma barra de ferro, segundo relatos, ele teria acertado o braço de um policial. Ouviu-se o primeiro tiro. O segundo tiro falhou, a confusão se intensificou, os manifestantes correram para tentar salvar Pagu. Herculano é atingido por novos disparos (ele morre depois no hospital) e Pagu é levada à cadeia de Santos.
A história toda é contada em detalhes pelo Estadão em sua edição de 25 de agosto de 1931 - ela aparece como “Elza Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu”. É possível ler o texto na íntegra no Acervo Estadão.
A cineasta Débora Gobitta caminha pela praça, observa. Ela vai filmar uma cena de seu documentário ficcional, baseado no livro de Adriana Armony, lá. “Penso numa cena em que Pagu discursa para uma praça vazia, como uma metáfora de como ela falou tanto, escreveu tanto e produziu tanto e ninguém ouviu o que ela disse. Ninguém assimilou tudo”, revela a diretora.
Cadeia Velha
Originalmente conhecida como Casa de Câmara e Cadeia, a Cadeia Velha de Santos começou a ser construída em 1839 num local chamado Campo de Chácara, onde fica hoje a Praça dos Andradas - e a rodoviária. Ela levou 30 anos para ser finalizada e, como uma curiosidade de sua história, está o fato de ela ter abrigado, em 1865, as tropas brasileiras que partiam para a Guerra do Paraguai.
No ano seguinte, o local virou um Fórum e só em 1870 a cadeia começou a funcionar - e funcionou por cerca de 80 anos. Depois disso, seguiram-se anos de abandono. Nos anos 1980, com o Centro também degradado, o lugar foi palco de manifestações culturais. Em 1994, foi inaugurada lá a Oficina Cultural Pagu, que depois mudou de lugar. Era uma homenagem e uma tentativa de continuação de sua militância cultural. E era uma forma de manter viva a memória de sua passagem pelo lugar - depois da manifestação da Praça da República, em 1931, Pagu foi levada à Cadeia Velha.
Tombado em 1959 pelo Iphan, o casarão abriga desde setembro de 2022 uma Fábrica de Cultura, projeto da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo que oferece cursos nas áreas de arte, cultura e tecnologia.
Chegamos em busca da Cela 3. Uma guia nos acompanha na visita, e diz que já viu outras pessoas perguntando onde Pagu ficou presa. Há controvérsias, ela diz, e aponta: “uns dizem que foi naquela, outras aqui”.
A cela 3, o local exato da prisão, é hoje a sala de dança. Da época de Pagu, e das outras dezenas de pessoas que dividiam o mesmo espaço, restaram uma pequena janela e uma pesada porta de ferro. Nenhuma placa ou informação histórica.
Pagu, quem?
Pagu frequentava um bar chamado Regina, na Praça da Independência, esquina com a Av. Ana Costa, no Gonzaga, que não existe mais. Era reduto da boemia. Em Viva Pagu, lemos que ela chegava ao local por volta das 21h e só ia embora quando Geraldo Ferraz passava para buscá-la depois de fechar o jornal e deixar o prédio de A Tribuna, no Centro, onde era secretário de redação.
Da época de Pagu, restam ao menos dois restaurantes. O Café Carioca foi fundado em 1939 e fica a poucas quadras do antigo prédio de A Tribuna, onde ela também trabalhou. Um dos mais tradicionais endereços da cidade, ele preservou sua essência histórica - além do piso e do cardápio. É possível que Pagu tenha comido o famoso pastel do Carioca, mas, ali, ninguém sabia de nada.
“Pagu, quem?”, perguntou a funcionária. Enquanto conversava com a reportagem, ela pesquisava no Google. Outros dois garçons repetiram a pergunta da colega. Não, ninguém sabia de nada.
Um pouco mais antigo do que o Carioca e um dos restaurantes mais longevos de Santos, o Almeida é de 1932. Na parede do prédio na Av. Ana Costa, 1, outro reduto da boemia santista década após década - ele abria até a madrugada -, vemos fotos históricas de Santos.
Em seu site, consta a informação de que Pagu era cliente, bem como Plínio Marcos e o poeta Roldão Mendes Rosa, que “viviam debruçados em suas mesas, trocando ideias e crescendo juntos”. Marcio Muniz, um dos donos do restaurante, confirma à reportagem a história que foi passando de geração em geração.
As casas de Pagu
Em sua primeira fase em Santos, nos anos 1930, Pagu viveu na clandestinidade e se mudou bastante. Alugou um quarto no Boqueirão, onde viveu brevemente com o filho Rudá e Oswald.
Depois, outro quarto na Ponta da Praia, na Rua Rei Alberto I, 367, muito próximo do Porto. Há hoje um prédio alto e envidraçado no local.
Pagu se refugiou também na Ilha das Palmas, perto do Guarujá - hoje, um clube privado.
Quando voltou à cidade em 1954, morou com Geraldo Galvão num apartamento de sobreloja no pé do Monte Serrat. Há relatos de que ela também viveu um tempo em São Vicente, entre outros endereços de Santos, tanto nos anos 1930 quanto nos anos 1950. Pagu morreu em casa, no nº 62 da Avenida Washington Luiz, onde foi velada. As casas já não existem mais.
Centro de Estudos Pagu Unisanta
Sem encontrar rastros de Pagu pelas ruas de Santos, fomos buscar os arquivos no Centro de Estudos Pagu, na Universidade Santa Cecília, de Lúcia Maria Teixeira Furlani. Mas também não havia nada lá. Não naquele dia. O maior acervo de fotos, documentos e inéditos da autora estava fechado para reforma.
Memória apagada
Pagu dá nome a alguns espaços de Santos, como o complexo artístico do município - o Centro de Cultura Patrícia Galvão. Ele é formado pelo Teatro Municipal Brás Cubas (ela se engajou muito em sua criação, mas ele só foi fundado 17 anos depois de sua morte), Teatro de Arena Rosinha Mastrângelo, Museu da Imagem e do Som de Santos (MISS), Hemeroteca Roldão Mendes Rosa, e as galerias de arte Brás Cubas e Patrícia Galvão.
Nas ruas e entre as pessoas da nova geração, ela vai desaparecendo.
Santos é hoje uma cidade muito diferente daquela que Pagu, que no fim da vida preferia ser chamada de Patrícia, conheceu. Cinemas, bares, restaurantes, pensões e hotéis… quase nada sobreviveu ao tempo. A Praça da República e a Praça da Independência são as mesmas, embora o entorno tenha se transformado. O Porto se modernizou. A cidade se verticalizou. Resta o mar. E restam, ainda, a vida cultural, os grupos de teatros que ela tanto incentivou, os festivais. Pagu foi uma agitadora, e esse legado, de alguma forma, ficou.
Adriana Armony diz que foi fácil imaginar Pagu pelas ruas de Paris, o que não aconteceu aqui. “Paris, hoje, é praticamente igual à época da Pagu, então dava essa sensação. Em Santos não dá, já está muito distante”, disse, no retorno a São Paulo. O dia de sol já era passado. O tempo fechou, chovia forte, a neblina encobria tudo à frente.
“Esse apagamento pode ter a ver com o hábito do Brasil de não preservar a nossa memória, principalmente a memória artística e literária”, ela continua. ”Mas fico pensando: as pessoas não se lembravam dela, mas será que se lembrariam de outros escritores de Santos?”, pondera ela, que é também professora de português e literatura no Colégio Pedro II, no Rio.
Débora Gobitta fala também em misoginia. “A sensação é que quando buscamos a Pagu, sentimos ainda mais a ausência dela. Penso em como calaram a Pagu desde sempre, e continuam calando. Sentimos a ausência dela, e isso é muito forte.”
Mas Pagu está voltando
Essa busca não se encerra aqui, e uma série de publicações previstas ainda para 2023 vai ajudar a colocar o nome da escritora em evidência. São obras que estão sendo preparadas há anos, com material inédito e pesquisas abrangentes, que vão ajudar a reviver o legado de Pagu. Sem contar todo o debate que deve ser feito na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip 2023), em novembro, quando ela será a autora homenageada.
- Veja o que está no prelo
Cadernos de Pagu
Biógrafa de Patrícia Galvão, Lúcia Teixeira publica manuscritos inéditos dos anos 1920 a 1960, que revelam a incursão de Pagu no Modernismo Antropofágico, a produção de texto na fase de adesão político partidária, além de escritos sobre literatura e outros escritores e algumas cartas. O livro está previsto para este semestre em uma coedição do selo Nocelli, da Reformatório, e Editora Unisanta.
Coleção Brasileiras
O perfil de Pagu que Maria Valéria Rezende escreve para a Coleção Brasileiras, coordenada pela jornalista Josélia Aguiar para a Rosa dos Tempos, do Grupo Record, era para ter sido o primeiro da série. Não foi, mas o timing revelou-se certeiro. A obra, que é um livro de memórias sobre a Pagu e, ao mesmo tempo, um livro de memórias de Maria Valéria, freira e escritora santista com uma trajetória notável (leia aqui uma entrevista-perfil publicada pelo Estadão em 2014), sai em tempo da Flip. Uma curiosidade: Valéria, sobrinha de Vicente de Carvalho, tinha 12 anos quando conheceu Patrícia Galvão na casa do tio, e, aos 20, foi ao seu velório.
Antologia Jornalística
Primeira antologia do jornalismo de Patrícia Galvão, Palavras de Rebeldia está no prelo da Edusp com quatro volumes organizados por Kenneth David Jackson, professor na Universidade de Yale e pesquisador há décadas da produção jornalística de Pagu. A obra resgata 200 colunas da autora, publicadas entre 1931 e 1961, com comentários sobre a política, sociedade e cultura brasileiras.
Até Onde Chega a Sonda
A Fósforo lança, em novembro, Até Onde Chega a Sonda, de Patrícia Galvão. Manuscrito inédito de 1939 que recentemente foi adaptado para o teatro e estrelado por Martha Nowill, agora sai na íntegra em livro com apresentação da pesquisadora e historiadora Silvana Jeha. Longe dos estereótipos de musa modernista ou militante comunista perseguida, o volume apresenta a densidade da escritora Patrícia Galvão - ela, que o elaborou na prisão, mostrava-se exaurida de lutar por sua liberdade, fosse essa amorosa, sexual, política ou de pensamento.
Filme Pagu no Metrô
Ainda em fase de produção, o filme de Débora Gobitta será uma espécie de documentário ficcional e incluirá também depoimentos de feministas francesas. Será rodado em Paris, Santos e São Paulo e contará, ainda, com Adriana Armony e Martha Nowill no elenco.
- Para ver e ler já
No teatro
Até Onde Chega a Sonda, estrelado por Martha Nowill, reestreia temporada nesta quarta-feira, 23, e fica em cartaz até 4 de outubro no Teatro Vivo (Rua Chucre Zaidan, nº 2460. As apresentações (leia mais sobre o solo) são sempre às quartas, às 20h, e os ingressos custam R$ 60.
Livros citados
Viva Pagu: Fotobiografia de Patrícia Galvão, de Lúcia Maria Teixeira Furlani e Geraldo Galvão Ferraz (Imprensa Oficial, 348 págs.; a partir de R$ 60 em sebos)
Pagu no Metrô, de Adriana Armony (Nós, 144 págs.; R$ 75)
Veja fotos históricas de Santos
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