BARCELONA - Há dois anos a “instapoeta” Rupi Kaur teve uma foto sua no Instagram, em que aparece deitada com uma calça de moletom suja de sangue, deletada da rede social. De lá para cá lançou Milk and Honey, traduzido no Brasil para outras maneiras de usar a boca (Ed. Planeta), lançado aqui no mês passado mas já campeão de vendas mundo afora, com mais de 55 milhões em cópias vendidas.
De origem indiana, Rupi cresceu no Canadá e foi lá que deu os primeiros passos nas artes, e especialmente, as performances, que ela ainda hoje usa para explorar formas de apresentar seus poemas. Durante a semana de poesia de Barcelona, aliás, a artista de 24 anos convidou a reportagem a participar de um projeto de documentação de línguas e linguagens com leituras dos poemas de Milk and Honey. O roteiro era bem simples, escolher um dos poemas do livro e lê-lo em português. Mas, detalhe, bacana seria não ler o poema durante a gravação, tinha que decorar mesmo: “o mundo / te dá / tanta dor / e você aí / transformando a dor em ouro / não há nada mais puro.”
Desde o auto-ódio que sentia, e a que próprio nomeia, até a “descoberta” do feminismo, passando pela relação com o véu para contar um pouco do próximo livro que, ainda que sem título e desenhos, já está bastante encaminhado. E, segundo a autora, para a política.
Como foi discutir o uso do véu com a sua família?
Quando chegou minha vez de crescer, eu nunca fui obrigada a usar, porque é mais cultural do que religioso. Você fica com vergonha quando vai a uma mercearia com sua mãe vestindo roupas indianas tradicionais, então, na verdade, algumas vezes estamos indo ao templo, todos nós vestindo roupas tradicionais e minha mãe para na mercearia: “Vá comprar um pouco de leite”. E eu: “Você está maluca? Não com essa roupa! Todo mundo vai rir da minha cara”. Quando criança eu sentia vergonha das minhas raízes indianas, isso foi até o meio da universidade. E então comecei a me aceitar como indiana e também mulher. Eu vivia dizendo que meninas são irritantes, muito cheias de drama, eu era mais ou menos assim, muito auto-ódio. Até que uma amiga me perguntou porque eu odiava garotas se eu era uma garota e eu não tinha resposta. Aquilo foi o que me fez rever meus conceitos, abraçar minha humanidade e herança.
Você fala bastante sobre violência sexual no seu livro Milk and Honey. São histórias baseadas na sua experiência pessoal?
Acho que em algum ponto, em diferentes níveis, várias de nós, eu mesma, as mulheres que lêem o meu livro, várias amigas, familiares, fazemos parte deste problema e esse é o motivo pelo qual eu tento dar voz, no meu livro, a nós mulheres. Parte do livro não aconteceu comigo pessoalmente, mas eu prefiro que o leitor descubra isso sozinho. Algumas histórias são sobre amigas ou mulheres contando episódios pelos quais passaram.
Tendo nascido na Índia e crescido no Canadá, imagino que você deve ter uma panorama claro sobre as diferenças entre o sexismo ocidental do oriental.
Acho que lidei com o machismo nos dois lados, lidei com isto no ocidente ao sentir a pressão de usar roupas muito curtas e também do outro lado, com a pressão de usar muita roupa. O ocidente adora acreditar que eles têm mais progresso que o oriente, e na verdade não, os dois estão errados. Se não é o seu corpo você precisa apenas parar de policiar esse corpo. São realmente coisas parecidas. Por exemplo quando eu postei a foto da minha menstruação no Instagram, há dois anos, tanto o ocidente quanto o oriente não gostaram. O ocidente disse que não tinham problema com menstruação mas que não precisávamos falar sobre isso e o oriente, claro, se irritaram. Na Índia, as mulheres menstruadas não podem entrar na cozinha durante esse tempo, isso continua muito estigmatizado como uma coisa suja.
Como você se sente quando vai a praia e encontra mulheres tomando banho de mar em burquínis?
Me faz feliz, por que não? Eu não acredito que nós temos qualquer direito de policiar os corpos das mulheres. Se outra mulher está usando burquíni, eu não estou na sua fé, então apenas deixo ela ser ela mesma.
Você se considera feminista?
Uma vez uma professora perguntou quais de nós nos consideramos feministas e eu imediatamente levantei a mão. Porque soa como algo positivo no contexto da mulher. Mas olhei ao lado e todos os estudantes estavam embaraçados ou ignorando completamente a questão, então decidi baixar a minha mão. A professora fez várias perguntas como, por exemplo, se acreditávamos que as mulheres deveriam ser bem tratadas, se temos o direito de ganhar o mesmo salário que os homens e dissemos sim para cada uma. Então, ela nos deu o veredicto: vocês são todos feministas mas tiveram dificuldade de aceitar essa palavra por causa da conotação negativa anexada a ela. Não é atrativo, é maluco e agressivo. Que garota quer ser assim? O feminismo tem me ensinado que eu posso fazer qualquer coisa que eu possa fazer. Acho que ser feminista não tem nada a ver com ser mulher é apenas acreditar em todas as oportunidades ser possíveis para todo mundo, econômicas, sociais, tudo isso.
A impressão que tenho quando escuto as pessoas falando de você é que todos tentam colocar você em rótulos seja por ser indiana, escrever poesia, usar o Instagram etc. Isso te incomoda? Como você faz para escapar dos rótulos?
Isso antigamente me incomodava, antigamente. Porque na minha cabeça eu quero realizar muitas coisas. Em 20, 30, 40 anos eu quero haver escrito uma pilha de livros, não quero ser reconhecida apenas com uma sensação do Instagram e isso leva anos e anos de dedicação. Para chegar nesse ponto já foram sete ou oito anos de trabalhos com performance, fazendo discursos e participando de competições. Não há documentação online para que o mundo veja isso. O mundo consegue ver apenas 5% do meu trabalho e do que eu faço, mas às vezes você é rotulada: “Ela é uma ótima poeta mulher.” Por que não pode ser apenas: “Ela é uma ótima poeta?” Por que sempre fazem questão de dizer que é uma mulher? Mas não me importo mais. Acho que os rótulos te incomodam num primeiro momento, mas logo você tem uma visão clara do que é que você quer realizar e é possível escapar de rótulos. Você quebra rótulos e alguém vai criar um novo, então minha missão é focar em melhorar a minha escrita e continuar trabalhando pela igualdade em debate, acho que é isso o que eu quero mesmo, apenas ver o mundo funcionando com mais igualdade. Sabe, é muita informação, muitos dados, acho que a gente já tem muita informação disponível e agora é hora de organizar e limpar essa informação. Tudo o que eu venha a publicar tem que ser útil com um impacto único e positivo.
Você diz que prefere ler obras de artistas que têm posição política definida. Pode-se dizer que a sua posição política também está expressa no seu livro?
Se você ler meus livros você naturalmente saberá sobre a minha posição política. Mas eu quero manter essa questão em mistério, mesmo que não ache que seja um mistério, para o meu segundo livro.
Como é o processo de tradução da sua obra? Considera que a tradução pode perder força?
Acho que é impossível. Não, calma, não quero dizer impossível. Mas como você pode traduzir 100% numa língua diferente? Esse é o motivo pelo qual a tradução me deixa um pouco apreensiva. Mas a tradução é melhor que nada, sabe? Só temos que acreditar que quem faz a tradução entende o sentimento que se quer passar. Mas você nunca sabe, na verdade eu nunca tive uma conversa com os meus tradutores. Não sou eu e o tradutor sentados juntos dizendo “sim, sim, é isso” ou “não, não foi isso o que eu quis dizer”. O que um tradutor entende, escreve. Mas ok, poesia é poesia, certo? E com os leitores funciona mais ou menos da mesma maneira.
O que podemos esperar do seu próximo livro?
A maioria dos poemas são apenas uma miragem do espelho a mim mesma, mas no livro número dois, eu consigo virar o espelho para o mundo e aí aparecem novas partes, especialmente no capítulo cinco que é um pouco político e ainda sobre os mesmos temas que Honey and Milk mas muito mais atrás, coisas novas e o número dois são também em cinco capítulos e isso abre com a experiência sobre dor em uma relação doente, uma pessoa quebra a mulher e a mulher quebra ela mesma porque há muito auto-ódio no capítulo dois, em que não se sentia bonita o suficiente, não se sentindo boa o suficiente, sentindo que não podia fazer nada. No capítulo três nós voltamos para as raízes familiares, ancestralidade, questões de refugiados, muitas histórias sobre os meus parentes, e a jornada deles. Conversei com minha mãe sobre o dia do casamento dela, o que ela sentiu e no capítulo quatro é uma experiência romântica positiva e, lembra-se da má experiência que ela teve no capítulo um? Agora ela redefine o amor, porque quando você vive uma relação amorosa destrutiva você passa a definir amor por algo violento. E você precisa redescobrir o amor e começa no capítulo quatro para no cinco ser uma celebração, muito sobre feminismo, revolução, amor próprio. É como se todos se dessem as mãos e começassem a dançar. Ainda não está editado, mas todos os poemas já estão feitos, embora todavia não tenha título, desenhos, capa e algo mais até meio de junho.
Os Outros Jeitos de Usar a Boca
Rupi Kaur
Editora: Planeta do Brasil
Preço médio: R$ 29
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