Declarações de amor, mesmo veementes, sinceras e inteligentes, costumam restringir-se ao objeto amado. É assunto “para dois”. Não no caso da paixão do jornalista, escritor, biógrafo e imortal da Academia Ruy Castro, 76 anos, pela bossa nova e sobretudo por Tom Jobim. Ele acaba de lançar O Ouvidor do Brasil - 99 vezes Tom Jobim.
Não se aproxime muito do livro nem comece a ler inadvertidamente, abrindo-o em qualquer uma de suas 230 páginas. Basta uma frase, um parágrafo, para comungarmos deste amor desmedido (mas muito, muito justificado) pelo autor de Águas de Março, Sinfonia da Alvorada e Matita Perê. Os 99 textos curtos, de quatro ou cinco parágrafos, no máximo, constroem um retrato de 360 graus de Tom, resultado de uma vida dedicada ao estudo da bossa nova, consequência de um punhado de obras definitivas. São 99 pílulas superconcentradas, escrita enxuta, direta, que mistura com rigor a informação correta e atrai mesmo o leitor eventual. Nenhum destes 99 textos deixa de provocar surpresa, meios-sorrisos e até gargalhadas. A prosa de Ruy não deixa ninguém indiferente.
Aos fatos. Para horror de José Ramos Tinhorão e outros nacionalistas de plantão, Ruy considera, como eu e todas as torcidas brasileiras reunidas, Tom o compositor mais brasileiro do século 20. Tanto quanto seu antecessor Heitor Villa-Lobos. Ruy não conta isso, mas o Villa morria em 1959 e o bastão da paixão sem limites pela natureza, pelos pássaros, pelos indígenas, pela grandeza natural do País passava sutilmente para Tom, que no ano anterior assinava com Vinicius de Moraes Chega de Saudade no violão e na voz de João Gilberto, e também, em 21 de abril de 1960, a Sinfonia da Alvorada, marcando o nascimento da nova capital federal, Brasília.
Estamos a trinta anos de distância da morte de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, aos 67 anos, em 8 de dezembro de 1994, em Nova York, e ainda assim concordamos amorosamente já com o primeiro texto, O voluntário da pátria. Ele começa dizendo que “a história o dá como tendo morrido (...) mas isso é só um formalismo. Tom não morreu. É o que sua permanência em nosso dia a dia faz pensar (...) Mas sua preocupação com o meio ambiente, em termos de preservação e defesa de mares, matas e seres, que tantas incompreensões lhe rendeu, só há pouco entrou para a pauta nacional (...) Tom não morreu, e a qualquer hora dessas vamos cruzar com ele, aflito, à sombra de alguma árvore que já não está mais lá”.
Este sonho lindo de Ruy Castro me fez lembrar uma previsão de Tom que ele explicou numa saborosa entrevista à escritora Clarice Lispector no escuro ano de 1968, publicada pela revista Manchete em setembro, apenas dois meses antes do AI-5. Ele de repente inverteu os papéis e disparou uma pergunta que já respondeu: “Quero te fazer esta pergunta, Clarice, a respeito da leitura dos livros, pois hoje em dia estão ouvindo televisão e rádio de pilha, meios inadequados. Tudo o que escrevi de erudito e mais sério fica na gaveta. Que não haja mal-entendido: a música popular, considero-a seriíssima. Será que hoje em dia as pessoas estão lendo como eu lia quando garoto, tendo hábito de ir para a cama com um livro antes de dormir? Porque sinto uma espécie de falta de tempo da humanidade - o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que é que você acha?” Clarice diz que “sofro se isto acontecer, que alguém me leia apenas do método vira-página dinâmico. Escrevo com amor e atenção e ternura e dor e pesquisa, e queria de volta, como mínimo, uma atenção completa. Uma atenção e um interesse como o seu, Tom”.
Atenção completa é hoje coisa raríssima. A lógica dos smartphones é a do estilhaçamento da informação; e com a inteligência artificial já realidade, a fragmentação promete ser exponencial daqui para frente. Tom teve uma premonição perfeita do mundo fragmentado, despedaçado nas redes sociais, que torna atos como a audição de um álbum (isso não existe mais; hoje rola apenas o ‘single’) e a leitura de um livro hábitos que hoje causam espanto. Devaneio em torno disso porque este livro de Ruy demole qualquer resistência que o leitor, mesmo o desavisado, possa ter. Uma vez capturado já nas primeiras duas páginas, não vai largá-lo.
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Cada ano que passa sem termos mais Tom fisicamente entre nós, sua música vai provocando em nós a sensação de que sua obra é cada vez mais necessária, cada vez mais decisiva para a música brasileira. Isso acontece desde os idos de 1994, já são 30 anos de saudade, palavra tão brasileira que representa, na expressão de um poeta, a sensação da presença de uma ausência.
Lorenzo Mammi, professor de filosofia na USP e curador do Instituto Moreira Salles, escreve no Cancioneiro Tom Jobim que “é um sinal de passageira sabedoria da classe política brasileira que Jobim tenha sido encarregado de compor a música para a inauguração de Brasília, junto com Vinicius de Moraes [Sinfonia da Alvorada]. Com efeito, tanto a arquitetura de Niemeyer como a música de Jobim são expressões plenas da delícia do instante singular, em face da volúpia da repetição; da preservação do halo afetivo da palavra e do espaço, em face da busca da expressão precisa, cortante. Bossa nova, em face do jazz - não negação, mas complemento necessário. Caetano Veloso já disse que o Brasil ainda há de merecer a bossa nova. A música de Tom Jobim, então, é uma promessa que o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu”.
Leia trechos de ‘O Ouvidor do Brasil’
Tom não se queixava do Brasil. ‘É o único país do mundo com nome de árvore. E não tem mais esta árvore‘. Queixava-se do brasileiro ‘que acorda todo dia para destruir o Brasil’ (...) ‘De que adianta eu sentir saudade do Brasil se ninguém mais sente?
O homem começou a derrubar as árvores assim que desceu delas’, dizia. Era quase uma ideia fixa, mais até do que a música - sobre a qual, aliás, pouco falava.
Tom tinha horror a avião (...) Ao compor o ‘Samba do Avião’, em meados de 1962, queria apenas celebrar uma chegada ao Rio por esse meio, voltando de São Paulo - ele que, na época, só fazia esse trajeto de trem.
Quando Vinicius de Moraes morreu em 1980 e deram o nome dele à tradicional rua Montenegro, Tom foi contra. Disse: ‘Os carros agora passam por cima do Vinicius e os cachorros mijam nele’.
O único político a quem o ouvi referir-se foi a então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, mas para dizer, rindo: ‘Dizem que fiquei parecido com ela, não?
Pelo fato de os cantores e compositores da bossa-nova gravarem-se uns aos outros, suas canções se espalharam e se eternizaram na memória das pessoas. E faziam isso porque os talentos eram mútuos e as admirações mútuas. A música não era um espelho, mas um caleidoscópio.
Esta cadeia se rompeu de vez a partir dos anos 80, quando cada grupo ou cantor passou a cantar apenas seu próprio material (...) Hoje, cada musica nasce e morre com seu autor. O engraçado é que, quando morre, ninguém parece sentir falta dele.
Não, a bossa nova não está nas paradas, A ararinha-azul também não. Mas, entre a bossa nova e a ararinha, a ararinha é a que está mais ameaçada de extinção.
Não parecia se interessar por música, só falava de palavras (...) Sabia nomear cada planta, bicho, acidente geográfico, tipo de vento e de estrela no céu. Certa vez , num avião, descobriu que a aeronave estava voltando porque as estrelas não estavam onde deveriam estar.
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