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Salman Rushdie, em queda livre, faz paródia de ‘Quixote'

Obra tenta um ‘aggiornamento’ do clássico de Cervantes, mas fracassa

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Por Parul Sehgal

Como os escritores, particularmente, definem o que é ter sucesso? Ele tem a ver com vendas, prêmios, críticas veneráveis? Mas apenas isto? Há medidas mais idiossincráticas, como a convicção no valor da obra literária ou os riscos assumidos ou, talvez, saber o custo da sua criação?

“O que você espera fazer é deixar para a posteridade uma prateleira de livros”, afirmou Salman Rushdie certa vez, citando Martin Amis. “Você deseja entrar numa livraria e dizer ‘daqui até aqui, sou eu”.

Salman Rushdie fracassa em 'Quixote' Foto: Carsten Bundgaard/Ritzau Scanpix/via Reuters

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Uma prateleira de livros. Gostaríamos que Amis fosse mais específico. Rushdie preenche uma prateleira, até duas, e muito bem. Ele é autor de quase 20 livros, seis publicados nos últimos 11 anos, mas com a qualidade em queda. Como sempre seus romances são imaginativos, mas são cada vez mais instáveis, inflados e rebuscados. Rushdie é um escritor em queda livre. O que sucedeu?

Salman Rushdie ficou famoso pela originalidade assombrosa do seu romance publicado em 1981, Os Filhos da Meia-Noite, a história de um menino “algemado à história, nascido no exato segundo da independência da Índia". A história é narrada na voz de Bombaim – agitada, musical, terna e profana –, uma nova voz de uma nova literatura de migração e identidade; a onda de escritores influenciados pelo livro foi chamada de “Os netos da meia noite”.

Em seguida, ele publicou Vergonha, sobre o nascimento do Paquistão, o seu romance mais raivoso, engraçado, e o de maior qualidade em minha opinião. O seguinte, Os Versos Satânicos, selou sua imortalidade literária. O aiatolá Khomeini emitiu uma fatwa contra ele e o obrigou a se esconder durante nove anos – “uma existência inquieta e sempre em fuga precipitada”, como Rushdie descreveu em seu livro de memórias, Joseph Anton.

Esse estilo famoso coagulou nos últimos anos; a exuberância que antes parecia tão espontânea agora dá a impressão de ser extenuante e molesta. “Se ele tinha uma falha, era da ostentação, pretender ser não só ele próprio, mas também uma encenação de si mesmo”, escreve Rushdie a respeito de um personagem em seu livro A Feiticeira de Florença, que pode ser interpretado como uma autocrítica. 

Seus livros mais recentes, Shalimar, O Equilibrista, Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites, A Casa Dourada – são todos cacoetes, narração exagerada e técnica que tentam abranger histórias dispersas, temas já esgotados, tipos passando como personagens. Para um escritor tão elogiado pela engenhosidade, Rushdie na verdade segue uma espécie de fórmula. 

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Você próprio pode fazer uma cartela de bingo: romance clássico ou mito usado como base, mulher fatal, história dentro da história (recontada por um narrador charlatão). Preocupações com temas atuais. Defesa da miscigenação. 

O novo livro de Rushdie, Quichotte, é uma releitura do Dom Quixote, influenciada por De Volta ao Futuro, A Odisseia, Lolita, Pinóquio, a peça de Eugene Ionesco, O Rinoceronte, e – por que não – o épico do século 12, A Conferência dos Pássaros. Nosso herói, um caixeiro-viajante de origem indiana, é alucinado pela televisão americana (no original, o Dom Quixote é obcecado por romances heráldicos). 

Ele começa a acreditar que é um habitante “daquele outro mundo mais radiante” e está decidido a conquistar o coração de uma bela apresentadora de TV (a nossa Mulher Fatal), Salma R. Parte para uma perseguição da sua amada e arranja um companheiro, um filho que ele chama, naturalmente, de Sancho. Na sua aventura, eles deparam com a América dos eleitores de Trump e um racismo infame (o que permite a defesa da miscigenação) e são envolvidos num complô envolvendo a crise de opioides (preocupações com temas atuais).

Esta história é revelada para nós como um trabalho em curso, a criação de um escritor de histórias criminais medíocre, outro indiano inquieto na América que escreve sob o nome de Sam duChamp, que tem um trabalho não concluído no seu país natal.  E não mencionei a invasão mastodonte. Ou o descanso em paz no cosmos. Ou o personagem inspirado por Elon Musk. Ou a aparição infeliz, mais no final do livro, de um personagem do tipo Grilo Falante. 

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E.M. Forster disse que, de todos os gêneros, a fantasia é talvez a que exige o maior ajuste por parte do leitor, uma suspensão especial da descrença. Mesmo que não seja necessariamente um grande ajuste, é preciso ser levado em consideração, do contrário o leitor ficará a ver navios, observando o orgulho do autor, os esforços excessivos sem sentido com um distanciamento e uma frieza crescentes. 

Os livros anteriores de Rushdie tiveram sucesso porque ele foi guiado por esta tomada de consciência e encontrou maneiras de nos atrair, nos divertir com seus próprios excessos. Em Os Filhos da Meia-Noite, Padma desempenha a função de um crítico literário: “Eis Padma me atormentando para eu voltar ao mundo da narrativa linear, o universo do que ocorreu em seguida”, afirma nosso narrador charlatão.

A capacidade de acreditar no absurdo está, naturalmente, no centro do Don Quixote, chamado o primeiro romance moderno com seus comentários sobre ficção, metaficção e realidade. “Ele duvida de tudo e acredita em tudo”, diz Dom Quixote referindo-se a Sancho Pança, uma precondição para ler a fantasia.

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“É, e não é”, é assim que os contistas árabes tradicionalmente começam suas histórias, como Rushdie escreve em Os Versos Satânicos

Há pretensões de explorar o que esse limite pode significar numa época em que as noções de verdade e realidade estão tão laceradas. Mas os impulsos narrativos de Rushdie são centrífugos; eles repousam no uso de celebridades e alusões literárias, colocar novos complôs em órbita na esperança de que possam emprestar brilho e fundamento a uma obra que infelizmente precisa de ambos, e infelizmente precisa estar vinculada com o mundo, o pensamento coordenado e o sentido de realismo, não mágica.

Como o Dom Quixote de Cervantes diz a Sancho: Os dentes são mais preciosos que os diamantes. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

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