Salman Rushdie promove batalha entre razão e fé, amor e ódio, gênios bons e maus

'Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites', seu 12º romance, acaba de chegar às livrarias brasileiras

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues

Para compensar o realismo de Joseph Anton, seu livro de memórias publicado em 2012, o escritor Salman Rushdie quis mergulhar em um pouco de fantasia. Voltou às origens, às histórias contadas pelo pai, ainda na Índia, ao filósofo de quem sua família emprestou, e depois recriou, o sobrenome, Ibn Rushd (Averrois, no Ocidente), e escreveu uma narrativa que, embora remonte ao século 12, se desenrola num futuro próximo – ou, como diz o autor, no dia depois de amanhã. Apocalíptico assim. Na verdade, são três momentos históricos, dois mundos e dezenas de personagens que começam a apresentar sintomas bizarros após uma tempestade – um jardineiro flutua, uma bebê denuncia a corrupção, outros disparam raios e por aí vai. Nova York está em pânico. 

Tudo isso porque dois filósofos rivais – um defensor da fé e o outro, da razão – já há muito mortos e enterrados –, voltam a duelar. Ghazali, o que crê em Deus, pede a um gênio que ele havia libertado, para levar o pânico ao mundo dos humanos e provar sua teoria. São os descendentes de Rushd, que, sem saber, se envolvera com Dúnia, uma princesa sobrenatural, que deverão enfrentar os espíritos maus na Guerra dos Mundos.

O autor. Aos 68, ele mistura, no livro, fantasia, mitologia, história e ficção científica Foto: Gustau Nacarino|Reuters

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Sobre Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites (que também significa mil e uma noites), o escritor conversou com o Estado na tarde de sexta, dia 1.º.

Há muitos pontos interessantes, como a luta entre a fé e a razão. O que mais o senhor pretendia discutir com o livro? É sobre a ideia de Goya que está na epígrafe. Ele diz que quando a fantasia e a razão estão unidas, elas produzem milagres e são as mães das artes. Quando separadas, os monstros aparecem. Tem mais a ver com a estranha ambiguidade entre o surreal e o normal e sobre como eles podem conviver criativamente ou destrutivamente. 

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É também um livro sobre o inesperado e a volubilidade do mundo. E até Donald Trump aparece.  (Risos). Não sei como ele foi parar lá. Quando escrevi, as pessoas não estavam pensando muito em Trump. A verdade é que o livro entendeu melhor que eu.

E estamos vivendo tempos estranhos, com ameaças terroristas. Acredita num futuro melhor ou caminhamos para o apocalipse?  São tempos muito estranhos mesmo. Não acredito que haja nenhuma inevitabilidade no apocalipse. Uma das coisas que se aprende estudando história é que o futuro nunca é inevitável e quase sempre surpreendente. É ingênuo acreditar que o mundo seguirá sempre na mesma direção. Vivemos numa época de mudanças ligeiras e transformações colossais. Esse foi o mundo que quis retratar: um mundo instável. Mas isso não representa, necessariamente, a vitória do mal. E, por isso, o livro tem um final feliz.

Mesmo assim, a civilização perde a capacidade de sonhar, e isso é pessimista. Também estamos perdendo essa habilidade? O futuro não podia ser completamente perfeito. As pessoas não acreditam na imaginação. É uma época em que a não ficção tem mais sucesso que a ficção. Quando vamos ao cinema, quase sempre vemos trailers começando com ‘baseado em uma história real’, como se isso desse à história uma maior autoridade. Temos que estender a nossa fé para o poder da imaginação para iluminar o mundo. 

O senhor diz que é seu livro mais divertido. O processo também foi? Passei quase metade do tempo checando se os pedaços da história se conectavam. Depois disso, o processo se tornou muito prazeroso e divertido. Houve muito improviso. Permiti que minha imaginação fluísse. Antes, eu não me permitia tanto improviso. Gostei.

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Acredita que histórias tenham um papel humanizador? Não acho que as histórias tenham um papel moralizador. O que fazemos, e não falo só de escritores, é contar uns aos outros e a nós mesmos histórias como uma forma de entendermos quem somos. 

Mas elas ajudam a nos colocarmos no lugar do outro. Faltam histórias, hoje? As pessoas estão muito literais, especialmente no que diz respeito à religião? Sim. Elas estão se trancafiando em narrativas limitadas sobre si, em definições limitadas sobre identidade. Quando nos retiramos para esta pequena e extrema definição de quem somos nos pegamos brigando com o outro. O que tento argumentar é que a identidade humana é multifacetada. Somos 25 coisas ao mesmo tempo. Se nos enxergarmos como múltiplos, fica mais fácil encontrar semelhança no outro. Podemos discordar no quesito religião, mas podemos torcer para o mesmo time. O que acontece em todos os lugares do mundo é que as pessoas estão sendo empurradas para os cantos e solicitadas a definir, mais simplificadamente, sua identidade. Essa parece ser a fonte do grande conflito que vivemos.

Seu narrador diz que o ódio, a estupidez, a devoção e a cobiça são os cavaleiros do apocalipse. Essas são as forças que soltaram sobre nós e é a natureza do apocalipse. Vivemos num tempo em que odiar se tornou muito fácil. Ao mesmo tempo, as pessoas sentem que o valor da vida diminuiu muito. Está muito barata e é fácil tirá-la de alguém. Essa é a parte sombria do livro: a guerra que cai sobre a cabeça das pessoas por causa dos djins das trevas. Mas esta é uma história de guerra entre o ódio e o amor. Na minha visão, precisamos viver num mundo em que o amor vença o ódio.

Finalmente a Academia Sueca se pronunciou sobre sua fatwa (decretada em 1989 por ‘blasfemar’ o Islã em Versos Satânicos) e disse que o senhor se tornou um símbolo da liberdade de expressão. Como viu isso? Agradeço, mas 27 anos é muito tempo para tomar uma decisão. E não me sinto como um símbolo, mas sim como uma pessoa. Tenho me esforçado para ser real, e não simbólico. A liberdade de expressão se tornou uma questão para mim por motivos óbvios e me engajo na discussão, mas me sinto obscurecido. As pessoas me colocam numa caixa com a marca ‘terrorismo’ e ‘religião’, e não perceberam que esses livros são imaginativos e cômicos.

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É verdade que a recompensa por sua morte aumentou? Quem se importa?

Não tem mais medo? Minha vida tem sido normal nos últimos 15, 16 anos. Só estou seguindo adiante. 

DOIS ANOS, OITO MESES E 28 NOITES Autor: Salman Rushdie Trad.: Donaldson Garschagen Editora: Companhia das Letras (336 págs.; R$ 54,90)

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