Para compensar o realismo de Joseph Anton, seu livro de memórias publicado em 2012, o escritor Salman Rushdie quis mergulhar em um pouco de fantasia. Voltou às origens, às histórias contadas pelo pai, ainda na Índia, ao filósofo de quem sua família emprestou, e depois recriou, o sobrenome, Ibn Rushd (Averrois, no Ocidente), e escreveu uma narrativa que, embora remonte ao século 12, se desenrola num futuro próximo – ou, como diz o autor, no dia depois de amanhã. Apocalíptico assim. Na verdade, são três momentos históricos, dois mundos e dezenas de personagens que começam a apresentar sintomas bizarros após uma tempestade – um jardineiro flutua, uma bebê denuncia a corrupção, outros disparam raios e por aí vai. Nova York está em pânico.
Tudo isso porque dois filósofos rivais – um defensor da fé e o outro, da razão – já há muito mortos e enterrados –, voltam a duelar. Ghazali, o que crê em Deus, pede a um gênio que ele havia libertado, para levar o pânico ao mundo dos humanos e provar sua teoria. São os descendentes de Rushd, que, sem saber, se envolvera com Dúnia, uma princesa sobrenatural, que deverão enfrentar os espíritos maus na Guerra dos Mundos.
Sobre Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites (que também significa mil e uma noites), o escritor conversou com o Estado na tarde de sexta, dia 1.º.
Há muitos pontos interessantes, como a luta entre a fé e a razão. O que mais o senhor pretendia discutir com o livro? É sobre a ideia de Goya que está na epígrafe. Ele diz que quando a fantasia e a razão estão unidas, elas produzem milagres e são as mães das artes. Quando separadas, os monstros aparecem. Tem mais a ver com a estranha ambiguidade entre o surreal e o normal e sobre como eles podem conviver criativamente ou destrutivamente.
É também um livro sobre o inesperado e a volubilidade do mundo. E até Donald Trump aparece. (Risos). Não sei como ele foi parar lá. Quando escrevi, as pessoas não estavam pensando muito em Trump. A verdade é que o livro entendeu melhor que eu.
E estamos vivendo tempos estranhos, com ameaças terroristas. Acredita num futuro melhor ou caminhamos para o apocalipse? São tempos muito estranhos mesmo. Não acredito que haja nenhuma inevitabilidade no apocalipse. Uma das coisas que se aprende estudando história é que o futuro nunca é inevitável e quase sempre surpreendente. É ingênuo acreditar que o mundo seguirá sempre na mesma direção. Vivemos numa época de mudanças ligeiras e transformações colossais. Esse foi o mundo que quis retratar: um mundo instável. Mas isso não representa, necessariamente, a vitória do mal. E, por isso, o livro tem um final feliz.
Mesmo assim, a civilização perde a capacidade de sonhar, e isso é pessimista. Também estamos perdendo essa habilidade? O futuro não podia ser completamente perfeito. As pessoas não acreditam na imaginação. É uma época em que a não ficção tem mais sucesso que a ficção. Quando vamos ao cinema, quase sempre vemos trailers começando com ‘baseado em uma história real’, como se isso desse à história uma maior autoridade. Temos que estender a nossa fé para o poder da imaginação para iluminar o mundo.
O senhor diz que é seu livro mais divertido. O processo também foi? Passei quase metade do tempo checando se os pedaços da história se conectavam. Depois disso, o processo se tornou muito prazeroso e divertido. Houve muito improviso. Permiti que minha imaginação fluísse. Antes, eu não me permitia tanto improviso. Gostei.
Acredita que histórias tenham um papel humanizador? Não acho que as histórias tenham um papel moralizador. O que fazemos, e não falo só de escritores, é contar uns aos outros e a nós mesmos histórias como uma forma de entendermos quem somos.
Mas elas ajudam a nos colocarmos no lugar do outro. Faltam histórias, hoje? As pessoas estão muito literais, especialmente no que diz respeito à religião? Sim. Elas estão se trancafiando em narrativas limitadas sobre si, em definições limitadas sobre identidade. Quando nos retiramos para esta pequena e extrema definição de quem somos nos pegamos brigando com o outro. O que tento argumentar é que a identidade humana é multifacetada. Somos 25 coisas ao mesmo tempo. Se nos enxergarmos como múltiplos, fica mais fácil encontrar semelhança no outro. Podemos discordar no quesito religião, mas podemos torcer para o mesmo time. O que acontece em todos os lugares do mundo é que as pessoas estão sendo empurradas para os cantos e solicitadas a definir, mais simplificadamente, sua identidade. Essa parece ser a fonte do grande conflito que vivemos.
Seu narrador diz que o ódio, a estupidez, a devoção e a cobiça são os cavaleiros do apocalipse. Essas são as forças que soltaram sobre nós e é a natureza do apocalipse. Vivemos num tempo em que odiar se tornou muito fácil. Ao mesmo tempo, as pessoas sentem que o valor da vida diminuiu muito. Está muito barata e é fácil tirá-la de alguém. Essa é a parte sombria do livro: a guerra que cai sobre a cabeça das pessoas por causa dos djins das trevas. Mas esta é uma história de guerra entre o ódio e o amor. Na minha visão, precisamos viver num mundo em que o amor vença o ódio.
Finalmente a Academia Sueca se pronunciou sobre sua fatwa (decretada em 1989 por ‘blasfemar’ o Islã em Versos Satânicos) e disse que o senhor se tornou um símbolo da liberdade de expressão. Como viu isso? Agradeço, mas 27 anos é muito tempo para tomar uma decisão. E não me sinto como um símbolo, mas sim como uma pessoa. Tenho me esforçado para ser real, e não simbólico. A liberdade de expressão se tornou uma questão para mim por motivos óbvios e me engajo na discussão, mas me sinto obscurecido. As pessoas me colocam numa caixa com a marca ‘terrorismo’ e ‘religião’, e não perceberam que esses livros são imaginativos e cômicos.
É verdade que a recompensa por sua morte aumentou? Quem se importa?
Não tem mais medo? Minha vida tem sido normal nos últimos 15, 16 anos. Só estou seguindo adiante.
DOIS ANOS, OITO MESES E 28 NOITES Autor: Salman Rushdie Trad.: Donaldson Garschagen Editora: Companhia das Letras (336 págs.; R$ 54,90)
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