A escritora argentina Samanta Schweblin usa a literatura fantástica para brincar tanto com o inquietante quanto com o familiar. Seus contos carregam uma contradição: são pesadelos que fazem o leitor sorrir. Em Hiran, por exemplo, dois amigos não conseguem saciar a sede em um bar de estrada porque o atendente, um homem muito baixo, não alcança a geladeira – sua mulher, aliás, acaba de morrer e o corpo jaz no meio da cozinha. Uma das principais autoras hoje de seu país, Samanta cria territórios peculiares, um mundo que faz lembrar Kafka, por vezes Flannery O’Connor, mas sempre com uma identidade própria e na qual a escrita está a serviço das histórias. É o que se observa em Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias (Fósforo), reunião de textos curtos de dois livros que dão nome a esse volume. Pássaros na Boca, por exemplo, é o título do conto sobre uma menina que se alimenta de aves vivas, história que precede a do rapaz que passa por uma prova para se tornar assassino de aluguel e também da esposa assassinada que, dentro de uma mala, se torna obra de arte. Aos 44 anos e hoje vivendo em Berlim, Samanta escreve textos marcados pela ruptura da lógica – sobre seu estilo, ela respondeu, por e-mail, às seguintes questões.
Por que a tensão é tão característica na sua escrita?
Como leitora, aproveito aquele momento quase mágico, de transe, em que esqueço que estou lendo, que estou segurando um livro cheio de palavras, minha cabeça desaparece e a única coisa que vejo é o que está acontecendo. É um estado de atenção absoluta. O julgamento e o preconceito são suspensos, assim como a autoconsciência, e a gente só quer ver o que acontece a seguir. Isso geralmente está associado à tensão de um thriller, por exemplo, ou terror, mas acho que a tensão é ainda mais forte e interessante se tiver relação com a premonição de estar prestes a entender algo de vital importância para nossas vidas, a ponto de poder responder a uma questão existencial que nos manteve no limite. Ou descobrir, talvez, que essa angústia que carregamos há meses é uma questão existencial particular, há palavras para formulá-la e comunicá-la, há outras atravessando a mesma incerteza, e intuir que, no exercício dessa leitura, aprenderemos algo que nos ajude a resolvê-la. Essa, eu acho, é a tensão mais poderosa.
Cortázar sugeriu que o conto fantástico faz uso de elementos plausíveis e introduz o fantástico momentaneamente, como um relâmpago que quebra a regularidade da narrativa, a ponto de os limites entre o ficcional e o real se confundirem. Se as pistas que garantem a verossimilhança estão presentes, por que devemos desconfiar de seu final?
É que talvez as coisas não sejam nem de um jeito nem de outro. Na verdade, quase nunca são. Me assusta tanto o dano constante com que essa sociedade contemporânea se informa com vídeos, tweets, microdepoimentos que basicamente explicam que o que acontece é A ou B. Essa ideia quase infantil de que as coisas acontecem por um único motivo. Talvez o mais bonito e complexo da literatura seja demonstrar exatamente o contrário, chegar a um fim ou a uma resolução capaz de demonstrar a complexidade dessas respostas, na melhor das hipóteses, jogando como espelhos, e deixando o leitor responder a parte dessas questões, cruzando as intenções do escritor com a bagagem cultural e vital de um leitor.
O mais incrível é que quase todas as histórias de Pássaros na Boca são possíveis de acontecer e mesmo assim é classificada como literatura fantástica. Como você avalia sua escrita?
A literatura fantástica lida com o impossível, embora eu colocasse o impossível entre aspas. A literatura do estranho, que é a que mais identifico com a minha escrita, trata do possível, mas pouco provável de acontecer. Mas, de todos os gêneros e rótulos literários, o mais complicado e enganoso ainda me parece ser o realismo. O que exatamente é o real, o normal, o acordado? Isso não é um consenso social? Na China, comem peixe vivo, e classificaríamos isso como realismo, mas se alguém na América Latina come um pequeno pardal vivo, é literatura fantástica. Então, o que seria realismo? Possivelmente nosso maior gênero literário. E a grande armadilha no meio de toda a nossa infelicidade.
Sua propensão a descrever a doença em um estilo tão cru é uma demonstração da vulnerabilidade da vida humana?
Pode ser. Talvez toda doença seja também a manifestação de algo que não funciona mais, de algo atrofiado, quebrado ou mal utilizado. As doenças às vezes podem ser mapas interessantes de fracasso, abuso, desgaste. Mas talvez de todas as doenças, o Alzheimer seja a que mais me chama a atenção, pois em nossa família tivemos muitos casos de tias e avós que sofriam com isso. Lembro-me daqueles adultos perdidos, raivosos e assustados desde minhas primeiras lembranças. Fiquei impressionada com o terror que um adulto poderia sentir se parasse de se lembrar de quem era ou de quem eram seus entes queridos. Se eles não conseguiam se lembrar, então quem eram exatamente eles? Acho que isso me marcou muito.
O que a atrai para o conto? No seu processo de escrita, qual é a maior limitação que tem de superar para aderir a esse formato e qual acredita ser a maior recompensa?
Acho que são as próprias ideias que precisam de um tipo de gênero ou outro, nem todas as ideias são boas para um formato como um romance. Em geral, sinto que minhas ideias funcionam melhor no conto. Às vezes, há contos que crescem e crescem até se tornarem algo maior, como aconteceu comigo com Distância do Resgate. E em outros, como é o caso de Kentukis, fica claro para mim desde suas primeiras notas que se trata de um romance. Mas sempre que posso escolher, prefiro a brevidade. Adoro histórias que me tocam de uma forma profunda, vital, histórias que conseguem me fazer pensar sobre algo que nunca tinha pensado antes, ou que me tocam de uma forma muito pessoal, e que produzem em mim um sentimento quase epifânico. Se a esse sentimento eu puder somar a intensidade de tudo isso em dez páginas, então acho ainda mais atraente. Ler um romance é como passar por um túnel, leva tempo, e a gente se prepara nessa caminhada no escuro para chegar ao outro lado e encontrar certas mudanças na paisagem. Mas uma boa história é como atravessar uma cortina na praia colombiana e aparecer nos Alpes suíços. Tudo acontece muito rapidamente, é como um ato de mágica, e, no melhor dos casos, o que muda não é a paisagem, mas a nossa forma de ver as coisas.
Como você vê o significado dos nomes e que tipo de coisas você pode transmitir ao leitor através da experimentação com o conceito de um nome?
O que dá um nome é a especificidade. Ela materializa algo que antes era abstrato. “Ele” não é o mesmo que “Marco”, e “Marco” não é o mesmo que “Doutor Otone”. A especificidade aciona na mente do leitor suas próprias experiências e memórias com esses nomes e rótulos, carregando as histórias com o próprio material pessoal de cada um, o que, por sua vez, confere a tudo uma grande materialidade. Mas tudo é relativo por escrito. Às vezes, é necessário exatamente o oposto, e passar pelos personagens sem nunca nomeá-los também pode criar um estranhamento interessante e funcional.
À medida que escritores começam a criar arte sobre seu período histórico, como você acredita que será a arte produzida a partir da era do coronavírus?
Isso é difícil de prever. Mas você pode fazer desejos. Por exemplo, espero que a arte em geral não continue a perder profundidade. Temo que haja um medo crescente de chegar ao fundo do poço, de se sujar, de correr riscos. Penso no cinema, na música, nas artes plásticas, e tenho a sensação de que, salvo algumas exceções, há uma tendência à simplificação. A arte está se tornando cada vez mais como dirigir por estradas perfeitas e bem iluminadas. Tecnicamente magistral, pode-se desfrutar da suavidade de seu asfalto por horas e admirar a clareza de toda a sua sinalização, mas no final você não chega a lugar nenhum. Falta de garra, força. Há barulho, mas não há escuridão real. Claro que estou generalizando, mas acho que há uma tendência de associar o transcendental e o profundo ao espaço do romantismo exagerado. Mas, como diria David Lynch, se a arte não está aqui para dizer constantemente “este mundo é um lugar muito estranho”, de que serve então a arte para nós?
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