O Sangue no Olho do título do primeiro livro da escritora chilena Lina Meruane publicado no Brasil não poderia ser mais literal: a protagonista do romance, uma escritora, Lucina, que usa Lina Meruane como pseudônimo, tem o olho encharcado de sangue por complicações decorrentes da diabete.
O que o leitor acompanha em seguida é uma luta intensa e sufocante contra esse inimigo invisível e implacável: a cegueira, que começa a tomar conta da vida da personagem. Mas o livro, publicado por aqui pela Cosac Naify, não para aí: orbitando pela obsessão que a protagonista alimenta pela doença estão o seu marido, um prestativo professor universitário, sua família de classe média alta chilena e uma Nova York estrangeira que parece não fazer favor nenhum para melhorar a condição bastante difícil da personagem.
“Uma das perguntas que quis colocar neste livro é como enfrentamos a enfermidade e a incapacidade que a cegueira produz em uma pessoa que enxerga”, diz a escritora Lina Meruane, a de verdade, professora de cultura latino-americana na Universidade Nova York, por e-mail ao Estado. “Se nos dobramos ou não aos discursos da superioridade da saúde.” Essa batalha ética é um dos principais fios condutores do romance.
O problema de saúde acaba resvalando em questões diversas. Em um trecho, logo quando chega ao aeroporto de Santiago, um estranho a aborda e começa a lhe dirigir uma série de questionamentos, que culminam na revelação da “verdade”, “as conexões entre o nosso 11 (de setembro) e o deles”, referindo-se ao golpe de Estado dado por Pinochet em setembro de 1973. Diz a narradora: “Não é coincidência nem é repetição, disse eu, entediada. Não passa de uma estranha imagem dupla”.
Em outros momentos, a exploração angustiante da personagem vira uma experiência sexual nova que a escritora cumpre com elegância e desenvoltura, lado a lado com a batalha tênue que está em todo o romance. “Comecei pondo minha língua num canto de suas pálpebras, devagar, e à medida que minha boca se apropriava de seus olhos experimentei um desejo impiedoso de chupá-los inteiros, intensamente, de torná-los meus no céu da boca como se fossem pequenos ovos (...).”
A agitação da Meruane personagem nunca afasta a percepção de se estar diante de uma pessoa (ou uma representação literária) real – tão real quanto possível. Na viagem ao Chile, quando o casal decide ir comer mariscos em uma praia isolada, a personagem pensa sobre o marido – “se lhe fizessem mal eu não estaria lá para ajudá-lo” –, e quando eles chegam ao restaurante e percebem que esqueceram a insulina, ela pensa: “Eu a tinha esquecido por não conseguir vê-la, Ignacio, mas também para testar você”. Sobre essas e outras belas nuances de seu livro, ética na literatura, experiência ficcional e projeções na realidade, Lina Meruane respondeu ainda às seguintes questões.
A doença nos olhos é uma experiência pela qual você passou?
A escrita desse romance usa uma experiência própria e logo vai se tornando outra. Então é e deixa de ser uma experiência própria. Por isso, escrevi um romance e não uma memória ou uma autobiografia. A realidade da doença é de Lucina e sua ficcionalização corresponde à outra, a Lina Meruane que assina seus livros. É um jogo de espelhos cegos. Interessava-me usar essa dúvida, essa curiosidade, essa doença, para tensionar a relação entre realidade e ficção e levar o meu leitor imaginário (como um cego, à mão) a remexer nos extremos obscuros a que a trama leva quando se separa do real.
O que a expressão ‘sangue no olho’ sugere em espanhol?
Não uma vontade pura, mas um desejo de vingança. Penso que o título funciona em ambas as línguas por mais que seja levemente distinto o sentido: apela a uma intensidade, a um impulso muito poderoso.
A protagonista disse em uma conversa com sua professora que só há um escritor cego. Imagino que tenha pensado em Borges, mas há na literatura ocidental certa corrente da literatura da cegueira. Você pensou nessa questão quando escrevia o livro?
Era Borges a figura, com efeito, porque a cegueira de Borges é única. Borges fica cego aos 50 anos, no momento em que começa a ser internacionalmente reconhecido, e fotografado. O rosto de Borges, com a vida perdida, com suas mãos de sábio sobre a bengala, é uma imagem icônica, indelével. É o grande cego da nossa literatura contemporânea. Não é que Lucina não saiba de Homero, de Milton, de Joyce. Então, o que ela quer dizer é que o grande, o contemporâneo, o cego terminal que os latino-americanos recordam é Borges. Por isso você adivinha.
Por que você se interessa pelo tema da enfermidade?
Terrivelmente interessada, para a minha desgraça (risos). A protagonista do romance anterior é também uma mulher enferma, e a minha tese de doutorado trata do impacto da aids na literatura... Deve ser porque minha primeira escola foi a conversa apaixonada de meus pais, ambos médicos, durante as refeições: tudo que diziam sobre o corpo, sobre seus males e seus tratamentos complexos, educou minha imaginação e minhas obsessões, foi meu campo semântico mais bem treinado. Mas não é só a materialidade da deterioração corporal ou os processos complexos que significam viver, mas sim os jeitos em que os corpos se metaforizam socialmente e se utilizam politicamente.
Acredito que você faz parte de uma geração de escritores latino-americanos que vivem, estudam e trabalham nos Estados Unidos, não? Como marca sua literatura o fato de viver fora de seu país?
A maneira que eu percebo é um pouco distinta da sua, eu vejo os escritores do meu tempo se movendo em muitas direções e para destinos distintos. Há um dinamismo não tão simples de ser traçado nem geográfica nem historicamente... Eu pertenço a uma família de migrantes; está na minha tradição estar inscrita no nomadismo e um tema recorrente quando nos encontramos é... a situação de nossas malas! Há sempre uma maleta ao redor da conversa e também, isso percebi muito depois, em meus romances. Sempre a protagonista está viajando, e a distância lhe permite ver o que deixa de maneira crítica. É como se as protagonistas de meus romances precisassem ver de longe para ver bem.
Lucina não parece aceitar que a enfermidade atente contra sua liberdade ou independência. É essa uma das forças do livro, a vontade de garantir independência apesar dos obstáculos?
Uma das perguntas que quis colocar nesse livro é como enfrentamos a enfermidade e a incapacidade que a cegueira produz numa pessoa que enxerga; isto é, se nos dobramos ou não aos discursos da superioridade da saúde. Em uma novela anterior, a resposta era se opor à ideia da recuperação, resistir aos imperativos da medicina. Em Sangue no Olho pensei o contrário: Lucina decide que, seja como for, não vai perder o olho, e isso a leva a extremos sinistros que nos permitem observar, espero, como o imperativo da saúde, levado à sua máxima expressão, pode ir contra a ética... Creio que isso é o que dá força ao romance, essa tensão, esse porvir.
Precisamente, todo o romance está imerso em debates éticos. Qual é o limite ético da literatura?
Eu queria dizer algo que fosse muito ético, mas lamentavelmente não vejo limites éticos dentro da literatura. Se quisermos ver cara a cara a monstruosidade que somos, há que se mostrar precisamente esses lugares onde toda a ética foi perdida, há que insistir nessas zonas escuras, ambíguas, remexer nesses limites incômodos, às vezes intoleráveis. Talvez aí se possa extrair, por oposição, uma ética, e um escritor ou escritora esperaria que essa tarefa cumpram os leitores: a de reagir ante o que se lê, a de refletir de maneira mais complexa sobre o que se coloca, a de se propor a participar eticamente, desde essa terrível claridade, do cenário social.
Escritores e Visão
SANGUE NO OLHO
Autora: Lina Meruane
Tradutora: Josely Vianna Baptista
Editora: Cosac Naify (192 págs., R$ 34,90)
Leia um trecho de Sangue no Olho:
"AMANHÃ
(Cá estou. Lá vou eu. Olhando outra vez pela janela do táxi, com o olhar fixo, tentando, da estrada, captar um pouco do horizonte, a silhueta agora oca de duas torres pulverizadas, a linha do céu mutilada junto ao brilho tênue do rio salpicado de estrelas, o néon do History Channel deslumbrante sobre a água. Vejo tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio. Os faróis do táxi rasgavam uma leve neblina noturna de papel e metais chamuscados que se negava a se esfumar, grudava no vidro e o embaçava. O turco ultrapassava alguns carros aos trancos, mas também deixava outros nos ultrapassarem, velozes, buzinando. Vocês cochilavam, talvez tenham até caído no sono, embalados pelas inclementes aceleradas e freadas. Acomodei a testa na janela e fechei os olhos até ser sacudida, Ignacio, por tua voz, tão nova em minha vida que às vezes eu demorava a reconhecer como tua, tua voz que, aliás, mudava de tom quando você falava em outra língua. Era uma voz para dar instruções em inglês ao motorista do táxi: que saísse pela próxima exit, que virasse para o oeste, que seguisse em direção à Washington Bridge, ainda acesa no horizonte. Não tínhamos planejado cruzar aquela ponte enferrujada, não estávamos indo para o subúrbio, do outro lado, onde eu morei um dia e para onde nunca pretendi voltar. Estava voltada para o presente, eu, isso era tudo que eu tinha enquanto deixávamos Julián na esquina do prédio dele e prosseguíamos para o teu, que agora era o nosso. E quando ficamos sozinhos você segurou meu rosto para que eu me virasse e te olhasse. Para que você pudesse me olhar. Teus olhos não percebiam nada de extraordinário, não viam o que havia atrás de minhas pupilas. Foi muito? Muito mais do que antes, falei, sombria, mas talvez amanhã. Amanhã você vai estar melhor. Mas amanhã já era hoje: só faltava clarear e as luzes mortiças serem eclipsadas pelo sol. Coroado com um turbante o turco parou de repente e escorregamos para frente. Não se mova, você disse, e depois senti a porta batendo, e você deve ter dado toda a volta para abri-la para mim, me dar a mão, me avisar que abaixasse a cabeça. Vendo-nos de longe, qualquer um diria que estávamos saindo de outro século, não de um carro. Descemos da máquina do tempo de braços dados e assim subimos a escadaria até o elevador e os cinco andares. Assim avançamos pelo corredor até o tintilar das chaves na fechadura. O ar parado do apartamento nos recebeu. O calor veio de todos os cantos, do chão sem tapetes, das paredes completamente nuas, das infinitas caixas que pareciam cheias de carvão em brasa em vez de livros. Havia dias que empacotávamos as coisas para uma mudança iminente. Por um corredor segui direto para o quarto, você entrou atrás: cuidado, deixei um copo d’água aqui para você. E nos jogamos na cama e nos abraçamos apesar da umidade e, ungidos de suor, adormecemos. E na manhã seguinte você levantou as persianas e sentou na minha frente esperando eu acordar, não sei se do meu sonho ou da minha vida. Mas eu estava insone havia horas, sem coragem de abrir os olhos. Lina? Levantei uma pálpebra, depois a outra, e para meu espanto havia luz, um pouco de luz, luz suficiente: a sombra sanguinolenta não tinha desaparecido do olho direito, mas a do esquerdo se precipitara para o fundo. Eu só estava meio cega. E por isso aceitei teu café e o levei à boca sem hesitar, por isso até sorri, porque, apesar de tudo. E você estava ali, como outro caolho, sem entender o que tinha acontecido. Não podia calcular a gravidade. Não se anivama a fazer todas as perguntas. Guardava-as para si, amarrotadas, como agora, no bolso.)"
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