WASHINGTON POST | “O feminismo nunca me atraiu”, escreveu certa vez Marguerite Elton Baker Harrison. No entanto, conforme retratado na empolgante biografia de Janet Wallach, Flirting With Danger [algo como “Flertando com o perigo”, em tradução livre”], Harrison não apenas desrespeitou as restrições impostas às mulheres em seu auge – as décadas de 1910 e 20 – como também buscou aventuras tão avidamente quanto qualquer homem.
Um título melhor para este livro poderia ser “Cortejando o desastre”.
A imensa autoconfiança de Harrison estava enraizada em sua linhagem aristocrática de Baltimore, na fortuna feita por seu pai, magnata da navegação, e em sua boa aparência. Ela estudou no Radcliffe College, mas não por muito tempo: ao saber que ela estava noiva do filho de sua senhoria, os Baker ordenaram que a filha voltasse para Baltimore.
Alguns anos depois, ela se casou com seu companheiro de sangue azul, Thomas Bullitt Harrison, por amor, não por dinheiro – do qual ele tinha pouco. Ela parece ter sido uma esposa e mãe satisfeita, mas, em 1915, Thomas morreu de um tumor cerebral, deixando a viúva para criar o filho de 14 anos, Tommy.
Harrison foi trabalhar para o Baltimore Sun, subindo rapidamente da coluna social para a crítica de teatro e depois para a reportagem. Quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, ela escreveu artigos sobre o fenômeno das mulheres assumindo – e desempenhando com competência – trabalhos anteriormente monopolizados pelos homens. Como parte de sua pesquisa, a própria Harrison trabalhou como rebitadora em uma empresa de construção naval, um interlúdio que ela resumiu no Sun como “a experiência mais maravilhosa e inesquecível da minha vida”.
Quando menina, Harrison costumava visitar a Europa com a família. Agora aproveitava suas conexões internacionais e seu notável dom para idiomas em funções complementares: correspondente estrangeira para o Sun e espiã para os governos americano e britânico. Quanto a Tommy, ela o deixou em um internato suíço.
Harrison escreveu prescientemente sobre as onerosas reparações impostas à Alemanha após a Grande Guerra e a hiperinflação que afligia a República de Weimar, mas foi na Rússia pós-revolucionária que ela assumiu os maiores riscos como espiã – e pagou o preço. Ela foi contra a opinião pública da época e defendeu o reconhecimento do governo bolchevique pelos Estados Unidos. Conseguiu uma entrevista com Leon Trotsky e, ao cobrir um discurso de Vladimir Lenin, admirou seu “poder silencioso”.
Mas alguém a delatou, e o chefe da Tcheka (a polícia secreta soviética), Solomon Mogilevsky, deu a ela uma escolha: ir para a cadeia ou espionar para nós. Ela tentou contornar a situação fornecendo apenas informações superficiais sobre seus companheiros estrangeiros em Moscou, para deixar Mogilevsky feliz sem colocá-los em perigo, mas ele acabou percebendo o artifício.
Na prisão, ela se viu na companhia de pessoas como Fridtjof Nansen, renomado explorador do Ártico; Maksim Gorki, proeminente escritor russo; e Merian Cooper, que mais tarde ganhou fama como produtor do filme King Kong. As condições eram terríveis e Wallach as evoca de forma memorável. Harrison costumava passar “boa parte da manhã caçando os vermes portadores de tifo que se arrastavam por sua cama e suas roupas e se aninhavam em seus cabelos”, mas ela resistiu e acabou sendo libertada.
Mais ou menos um ano depois, porém, ela aproveitou uma visita jornalística à Ilha Sakhalin, então controlada pelos japoneses, para voltar à – caramba! – vizinha Rússia. Mais uma vez ela entrou em conflito com Mogilevsky, mais uma vez não conseguiu trair outros ocidentais e mais uma vez foi para a prisão.
Harrison teve outras aventuras – só um pouco menos angustiantes – em viagens como freelancer, entre elas uma estada fisicamente dolorosa com Cooper entre os nômades Bakhtiari da Pérsia, o que resultou no extraordinário documentário Grass (1925). Ela sossegou um pouco depois de se casar de novo em 1926, e Wallach cobre o resto da longa vida de sua personagem – Harrison morreu em 1967, aos 88 anos – em meras cinco páginas.
Esse tratamento superficial impede que Flirting With Danger seja um retrato totalmente recompensador. Wallach, cujos outros livros incluem uma biografia da ousada escritora de viagens britânica Gertrude Bell, concentra-se tão intensamente no desejo de aventura de Harrison que as outras facetas de sua vida recebem pouca atenção. Por exemplo: Harrison escreveu sete livros, mas o leitor pouco fica sabendo sobre eles. E embora Wallach tenha entrevistado alguns dos descendentes de Tommy, ela só fala sobre o que parece ter sido um relacionamento tenso entre mãe e filho.
No final da carreira de espionagem de Harrison, seu contato em Washington a elogiou por dar “à Inteligência Militar mais informações sobre a Rússia do que qualquer outro agente”. Goste ou não, ela era uma feminista exemplar, mesmo que só pelo exemplo.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Flirting With Danger: The Mysterious Life of Marguerite Harrison, Socialite Spy
- Editora: Doubleday
- Autora: Janet Wallach
- 326 páginas; R$ 284 (Impresso); R$ 85,98 (E-book) - Livro em inglês
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