Sentada sob uma claraboia naquela brilhante manhã de domingo, Sophie Kinsella lembrava uma matriarca elegante e um pouco cansada que poderia ser personagem de um de seus romances. Saia de leopardo esvoaçante, ok. Marido dedicado que se parece com Harrison Ford, ok. Casa perto do Tâmisa, com barras de chocolate numa bandeja de prata na sala de estar, ok.
Em seguida, Kinsella levantou os cabelos castanhos para mostrar a marca deixada pelo tratamento de um tumor cerebral. Era um glioblastoma, o tipo mais agressivo.
“Eu passei muito tempo sem conseguir dizer a palavra ‘câncer’”, disse ela. “Ainda sinto uma descrença residual, misturada com medo”.
Kinsella, 54 anos, é autora de 33 romances, muitos deles best-sellers, como Os Delírios de Consumo de Becky Bloom, que deu origem a oito spin-offs e um filme. Seus romances foram traduzidos para 40 idiomas em mais de 60 países (no Brasil, ela é editada pelo Grupo Record). Venderam aproximadamente 48 milhões de cópias no mundo todo, incluindo sete livros que Kinsella escreveu sob seu nome de nascença, Madeleine Wickham.
Mas, ao longo de uma entrevista que oscilou entre desoladora a otimista, ficou claro que os únicos números que importam agora são outros. Kinsella e seu marido, Henry Wickham, estão casados há 33 anos. Eles têm quatro filhos e uma filha, com idades de 28 a 12 anos.
Os sintomas de Kinsella começaram em 2022, com uma série de quedas. “Minhas pernas pararam de funcionar”, disse ela. “Não conseguia subir escadas direito.”
Ela tinha passado por uma cirurgia de emergência na vesícula biliar – “Na época, foi uma notícia grave, imagine só” – e a recuperação foi lenta. Ela tinha dores de cabeça. Ficava com falta de ar e confusa. Estava se comportando de um jeito “meio estranho”, disse Wickham. Por exemplo: certo dia, Kinsella lhe deu uma tesoura e pediu que ele cortasse todo o seu cabelo. Ele se recusou.
Kinsella tinha “feito exames no corpo todo por causa disso e daquilo”, disse Wickham, mas as respostas eram inconclusivas.
Em novembro daquele ano, ele estava tomando um café enquanto aguardava o ensaio do coral do filho quando lhe ocorreu que tinha apenas uma parte do corpo de Kinsella que ainda não havia sido examinada. Wickham foi para casa, ligou para o médico e disse: “Talvez eu esteja sendo um marido superprotetor, mas precisamos fazer um exame no cérebro”.
O exame mostrou o tumor. De início, Kinsella e Wickham só compartilharam a notícia com um pequeno círculo de familiares adultos e confidentes, querendo que a vida dos filhos mais novos seguisse normal pelo maior tempo possível.
“Eu me arrepiei quando entrei no prédio e vi as palavras Centro de Câncer”, disse Kinsella. “Pensei: ‘Não quero ficar aqui! Não! Por favor, vamos dar meia-volta e ir para outro lugar’.”
Em 25 de novembro de 2022, ela passou por uma cirurgia de oito horas. “Quando acordei, não conseguia andar. Não conseguia escrever meu nome. Não conseguia me equilibrar. Não conseguia virar a cabeça”, disse Kinsella. Ela tinha medo de nunca mais escrever. “Por um tempo, era um golpe atrás do outro. Eu até me sentia bem, mas aí me lembrava do que tinha acontecido.”
Kinsella tentou manter a aparência de normalidade para os filhos. Quando a caçula quis fazer um vídeo no TikTok, ela topou participar de sua cama no hospital. O esforço não foi bem-sucedido, disse Kinsella, mas “eu estava determinada: vou dançar com minha filha mesmo que minhas pernas não funcionem”.
Em seguida, veio a radiação. “Cansaço nem começa a descrever o que era aquilo. Parecia que meu corpo era de concreto”. E a quimioterapia: “Surreal”. E aprender a conviver com a perda de memória: “Felizmente, Henry é uma pessoa muito confiável.”
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Mudança de perspectiva
Kinsella entende que sua doença é terminal e que o glioblastoma sempre volta.
“Quando as pessoas perguntam como estou, não penso num nível existencial e geral”, disse ela. “Porque é uma coisa muito grande, muito complexa, muito mutável. Se me perguntam num dia, estou de um jeito. Se me perguntam no dia seguinte, estou chorando. Às vezes, estou rindo. Hoje estou assim. Aí me bate algum aspecto que eu não tinha considerado e fico completamente arrasada. Mas sempre posso falar sobre como estou hoje.”
Ela continuou, engolindo as lágrimas: “Mesmo só de dizer ‘daqui a dez anos’, eu começo a ficar meio perdida. Porque simplesmente não sabemos.”
Wickham pegou na mão dela.
Em julho de 2023, o casal reuniu os filhos para uma conversa sobre o prognóstico de Kinsella. Os três mais velhos estavam cientes do quadro geral, mas os dois mais novos não sabiam nada além de “mamãe está doente”, disse Wickham. “Queríamos que eles soubessem qual seria, provavelmente, o resultado final.”
Kinsella disse: “Vi muitos lenços de papel. Mas vi também resiliência”.
Durante todo o processo, Kinsella manteve um caderno de anotações perto da cama, sabendo que “mesmo quando estava passando por essa situação horrível, talvez quisesse escrever a respeito”.
Inspiração
Ao longo de três décadas, Kinsella se sentou à escrivaninha e escreveu mil palavras por dia. Ela já tinha escrito seis livros quando enviou Os Delírios de Consumo de Becky Bloom, a história semiautobiográfica de uma jornalista financeira louca por compras, para sua agente, Araminta Whitley.
O romance era diferente das comédias sociais em terceira pessoa de Madeleine Wickham – “Eu simplesmente caí na gargalhada desde o começo”, disse Whitley – então as duas o enviaram anonimamente para a editora de Kinsella no Reino Unido e depois para editoras internacionais, sob um pseudônimo.
Linda Evans, editora de longa data de Kinsella, soube imediatamente que seria “maluca” se não comprasse o livro. “Eu já conseguia ver a capa”, disse Evans. “Foi um sucesso, não só no Reino Unido e nos Estados Unidos, mas no mundo todo.”
Junto com os romances de Helen Fielding e Marian Keyes, Os Delírios de Consumo de Becky Bloom e seus sucessores deram início ao apogeu do que ficou conhecido, às vezes de forma depreciativa, como chick lit, caracterizado pelas capas cor-de-rosa, pelo humor espirituoso e pelas roupas de grife.
Quando o gênero se transformou em ficção feminina (mais bebês, menos martinis) e depois em comédia romântica (menos compromisso, mais tatuagens), Kinsella aproveitou a onda. Mesmo enquanto ela envelhecia, suas protagonistas continuavam na faixa dos 20 e 30 anos, deixando as leitoras com a sensação de que ainda estavam em contato com versões mais jovens de si mesmas à medida que enfrentavam a carreira, a meia-idade, a maternidade e os problemas de saúde.
Agora deitada na cama, Kinsella escrevia o que podia. Ela sabia que não queria tentar escrever um livro de memórias – sua memória não estava à altura da tarefa. Um dia, ela escreveu um conto sobre um casal que saía para caminhar e cantar músicas natalinas enquanto a esposa se recuperava de uma cirurgia no cérebro. A história virou um capítulo de What Does it Feel Like?, lançado pela Dial (O livro está no prelo da Record com previsão de lançamento para fevereiro de 2025).
A novela se desenrola em vinhetas, seguindo Eve Monroe, uma romancista de sucesso e mãe de cinco filhos que tem câncer. Ao pesquisar “glioblastoma de grau 4″ na sua cama de hospital, ela fica sabendo que o tempo médio de sobrevivência é de 12 a 18 meses. Não há cura. O livro é nitidamente menos alegre do que os anteriores, mas ainda é uma história de amor. Também é engraçado, por mais estranho que pareça.
Kinsella disse: “A ironia é que tive uma vida incrivelmente afortunada. Pude escrever, pude ter filhos, conheci o amor da minha vida na faculdade, e tudo se encaixou de um jeito brilhante até que, bum, o golpe do destino. Dava para ver que a narrativa seria esta”.
Eve e seu marido, Nick, dão a notícia aos filhos durante um jogo de Scrabble. O caçula quer saber como a mãe ficou doente, mesmo comendo só salada de feijão. A filha pergunta: “Você ainda vai assistir à minha peça?”.
Frase a frase, Kinsella se distanciou do medo, que sempre esteve lá, embora a linguagem fosse um escudo confiável. Ela disse: “Levei um tempo para descobrir como encontraria um final feliz, mas eu estava absolutamente determinada”.
Em 17 de abril, quase um ano e meio depois da cirurgia, Kinsella estava pronta para compartilhar a notícia do diagnóstico com os fãs. “Eu estava esperando ter forças para fazer isso”, escreveu ela numa publicação no Instagram. As respostas foram tão comoventes que ela publicou um vídeo agradecendo a gentileza.
“Eu pensava: ‘OK, agora posso ser eu mesma, finalmente’”, disse Kinsella. “Acho que chega um ponto crítico em que se você é discreta demais pode parecer que está se escondendo.”
Em junho, ela participou de seu primeiro e único evento presencial para The Burnout (2023), que foi lançado enquanto ela estava se recuperando. Os ingressos para a comemoração na filial da Waterstones em Piccadilly se esgotaram em menos de 24 horas, e havia centenas de pessoas na transmissão ao vivo. Jenny Colgan, colega romancista e amiga, pediu educadamente para o público não fazer perguntas sobre a saúde de Kinsella. Todo mundo obedeceu.
Pessoas de todas as idades, de vários cantos do mundo – Paquistão, Lituânia, Estados Unidos, Escócia – levantaram a mão e falaram sobre o que o trabalho de Kinsella significava para elas. Uma mulher que cresceu em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, disse que os romances de Kinsella foram os primeiros que ela leu em inglês. Outra falou sobre como os livros a conectaram com uma irmã muito mais velha. Outra ainda revelou que seu pai era um fã incondicional. Uma mulher na última fila perguntou como incorporar a alegria à sua própria escrita.
Kinsella – frágil, mas radiante num vestido de festa – disse: “Se você contar uma história verdadeira, as pessoas vão se interessar”.
Quando uma leitora perguntou sobre seu protagonista masculino favorito, Kinsella fez uma menção honrosa a Luke, de Os Delírios de Consumo de Becky Bloom. Mas ela identificou Nick, que o público conhecerá em breve, como seu verdadeiro amor. “Se você ler o livro, vai entender como ele é um herói”, disse Kinsella. “Meu marido tem sido um herói nesses últimos 20 meses.”
Colgan fez a Kinsella a pergunta que deixa muita gente perplexa: O que ela acha do termo “ficção para mulheres”?
Kinsella disse: “Acho que é uma pena, na verdade, porque a comédia é unissex, e a história é unissex, e eu realmente não entendo por que precisa ser uma coisa tão polarizada”.
Colgan e Kinsella riram das cartas que chegam todo mês de setembro, depois das férias de verão, de homens que escrevem algo do tipo: “‘Encontrei seu livro numa casa de praia. E li tudo. E era bom’”, disse Kinsella. “Eles parecem meio chocados. É como se a capa os orientasse a achar o livro ruim, mas adivinhe só?, era uma história que valia a pena”.
Kinsella mantém o foco no dia a dia – e cada um deles começa com a mesma rotina: “Henry se levanta muito cedo. Lê a internet inteira e me traz uma xícara de chá e uma história de esperança. Ele diz: ‘Li sobre alguém que viveu muitos anos depois do diagnóstico’”.
Ela disse: “Eu realmente quero ser a história de esperança de outra pessoa”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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