A jovem Tamires Spiandorelle, de 21 anos, tem dois patins de gelo tatuados no braço, mas pisou pouquíssimas vezes em uma pista de patinação. O desenho eternizado em sua pele é, na verdade, uma homenagem a um de seus livros preferidos: De Lukov, Com Amor, da americana Mariana Zapata. A obra faz parte de uma tendência que tem ganhado cada vez mais força na literatura comercial: o sports romance (romance de esportes, na tradução).
“É um subgênero do romance, em que um (ou mais de um) protagonista está envolvido com um esporte. Pode ser um atleta e alguém do time de relações públicas, pode ser um atleta e um técnico também. Há muitas variantes, mas todo o mundo em que eles vivem está relacionado a esportes de alguma maneira”, explica Julia Barreto, editora da Harlequin Brasil, selo do grupo HarperCollins especializado em romances românticos.
Na Bienal do Livro de São Paulo, que ocorreu entre 6 e 15 de setembro, eles estavam em todos os cantos, com capas ilustradas com casais cercados por tacos de hóquei, bolas de basquete, campos de futebol e carros de Fórmula 1. Eles também foram tema de uma mesa de discussão da programação oficial e apareceram nas listas de mais vendidos de editoras como Rocco, Alt (selo da Globo Livros), Paralela (selo comercial da Companhia das Letras) e a própria Harlequin.
“Hoje em dia, eu acho que 90% do que eu leio são livros de romance com esportes”, diz Tamires, que divide o seu tempo entre a faculdade de biomedicina e o trabalho como influenciadora de livros no perfil do Instagram @bookspiandorelle. “Além da parte do romance fofo que eu gosto de ler, eu me sinto dentro daquele ambiente. Quando tem descrição de torcida, jogada, expectativa, tudo aquilo ali, acho que eu consigo me ver ali dentro”, explica.
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Esportes americanos
Julia Barreto aponta que as histórias de amor no mundo dos esportes não são algo novo, mas têm vivido um boom no mercado da ficção comercial. Para ela, isso se deve a um crescimento do interesse por esportes de maneira geral aliado à ascensão do próprio romance contemporâneo (histórias de amor ambientadas nos dias de hoje). A tendência começou no exterior e chegou ao Brasil nos últimos anos.
Um primeiros fenômenos do gênero por aqui foi a série de livros Amores Improváveis (2015), da americana Elle Kennedy. “[Ela] é um dos maiores expoentes do sports romance, e talvez a principal representante de uma das vertentes mais populares desse gênero, que é o romance de hóquei”, diz Marina Castro, editora da Paralela. A série, que já rendeu dois spin-offs, acompanha quatro amigos jogadores de hóquei em uma faculdade fictícia nos Estados Unidos.
“[Quando lançamos o primeiro livro], tínhamos um pouco de receio por causa do hóquei, já que não é um esporte comum no Brasil, mas também tínhamos a sensação de que esse ‘exotismo’ poderia atrair os leitores e convidá-los a conhecer mais desse novo universo. Foi uma aposta que deu muito certo, os leitores adoraram, e não paramos de investir nesses romances desde então”, completa.
“Acho que o brasileiro gosta muito de esportes (isso fica bem claro em época de Olimpíadas, por exemplo!) e o sports romance une duas paixões: uma história de amor e o universo das competições.
Marina Castro, editora da Paralela
Em abril, a Paralela publicou Atrás da Rede, de Stephanie Archer, que foi o segundo livro mais vendido da editora na Bienal. A Rocco também investiu nos romances de hóquei: na Bienal, Quebrando O Gelo e No Calor Do Momento, de Hannah Grace, estiveram na lista de mais vendidos.
No evento, a editora também lançou Nas Alturas, da americana Liz Tomforde, um romance entre um jogador e uma comissária de bordo. A trama é o início de uma série que também inclui basquete e beisebol. “Imagino que [um dos motivo para a popularidade do gênero] seja a fantasia de alguém que seja forte, atlético e que fique bem em um uniforme. Além disso, há o elemento adicional de que eles têm muita atenção sobre eles e ainda assim só têm olhos para uma pessoa”, explica a escritora ao Estadão.
Os livros de Tomforde, assim como muitos sports romance, têm cenas quentes, apesar de isso não ser uma regra da tendência, que abarca livros para adultos e para jovens.
Para Julia, da Harlequin, uma boa história de amor precisa ter tensão, algo que não falta com a a rivalidade, a competição e a pressão do ambiente esportivo. Marina, da Paralela, concorda: “Aumenta a adrenalina da história, o que está em jogo não é só o relacionamento dos personagens, mas prêmios, disputas, medalhas… Isso cria um clima mais intenso, mais apaixonado nos livros.”
Limites entre ficção e realidade
Os romances de esportes são sucesso no BookTok, o nicho literário do TikTok, e já até geraram polêmica nos EUA. No ano passado, a discussão ficou em alta no exterior quando leitores usaram imagens de jogadores de hóquei de verdade como modelos para jogadores fictícios em seus posts sobre os livros e deixaram comentários explícitos em perfis de alguns dos atletas. Os limites entre ficção e realidade são tema de debate: tudo bem se inspirar em pessoas reais? Quão fiel o esporte deve ser retratado? Qual o limite da liberdade criativa em prol da história?
Tomforde diz que escreveu com base em esportes que conhece bem e, em alguns casos, fez entrevistas para aumentar a credibilidade da trama. Isso fica mais complicado com esportes com um número pequeno de atletas, como a Fórmula 1, tema de livros como Operação Paddock (Paralela), da brasileira Arquelana, Puro Impulso (Harlequin), de Lauren Asher, e Um Amor Sem Freio, de Simone Soltani, publicado em setembro pela Intrínseca.
“Sem dúvida, eu me baseei em equipes e pilotos do passado e do presente para moldar o grid fictício [do livro], embora todos tenham seu próprio toque original”, admite Soltani ao Estadão. Ela afirma que, mesmo consumindo e acompanhando integralmente um esporte, sempre há detalhes que somente os atletas saberão.
“É preciso tomar certas liberdades criativas para preencher esses espaços em branco e contar uma história. Ainda assim, é importante para mim manter certos detalhes o mais próximos possível da realidade, pois isso ajuda a fundamentar a história e permite que o leitor acredite que isso é algo que realmente poderia acontecer”, explica.
É uma linha tênue a ser percorrida, mas essa é a vantagem da ficção - você sempre pode criar seu próprio mundo onde as coisas são apenas um pouco diferentes do que são na realidade.
Simone Soltani, autora de 'Um amor sem freio'
Para Tamires, que diz que o único esporte que acompanha com frequência é o vôlei, a fidelidade às regras não é algo determinante: “Como eu não sou experiente, raramente eu vou saber dizer se está muito diferente ou não. Acho que temos que levar em consideração que é um livro. Nunca vai ser 100% real. Se você quer 100% real, você tem que assistir.”
Diversidade e brasilidade
Tamires conta que lê muitos livros nacionais de autores independentes e muitos deles se passam no exterior, com histórias sobre futebol americano, lacrosse e, claro, hóquei. Mas se o boom dos romances com esporte começou com esportes populares nos EUA, o seu crescimento no Brasil, ao menos nas editoras mais tradicionais, também aparece com mais brasilidade e diversidade.
A Harlequin publicou neste ano Te Vejo Na Final, livro do brasileiro Ayslan Monteiro sobre um romance gay durante a Copa do Mundo de Futebol - certamente o esporte mais popular do Brasil. A ideia veio quando o autor percebeu que nunca houve um jogador abertamente homossexual a disputar o torneio - no seu romance, um brasileiro e um alemão que jogam no mesmo time se apaixonam enquanto são rivais no campeonato mundial.
“O esporte já te coloca à flor a pele”, comenta Ayslan. “Nesses livros, é quase como se a gente vibrasse por diferentes eventos. Você quer ficar pelo romance, mas você também quer ficar pelos resultados.” (O livro do escritor, aliás, começa com uma nota do autor avisando que algumas regras tiveram que ser modificadas para fins narrativos.)
Julia Barreto diz que a aposta da Harlequin no livro de Ayslan foi mais “ousada”, pois ambos sabiam que o público-alvo estava mais acostumado com esportes americanos e relações heteronormativas, mas a recepção tem sido positiva. “Acho que Te Vejo Vejo na Final é um livro que tem muito potencial para a comunidade LGBT, mas, principalmente, que tem muito potencial para abrir a cabeça de leitores sobre o quanto o esporte é um ambiente não inclusivo”, diz o autor.
Outro livro que envolve a Copa do Mundo - neste caso, a feminina - é Jogando No Seu Time, de Meryl Wilsner, dos Estados Unidos, que acabou de chegar às livrarias pela Rocco. A trama acompanha o romance entre duas companheiras de equipe da seleção americana. Wilsner, que se considera uma pessoa não binária, afirma que a representatividade “pode mostrar às pessoas o que é possível”.
“Sinceramente, o mundo dos esportes femininos tem muitas pessoas queer. Meu foco em personagens LGBT e no amor LGBT se deve, em parte, ao fato de que nossas histórias merecem ser contadas, mas também porque essa é a minha vida e essas são as histórias e os personagens que mais amo”, afirma.
Marina, da Paralela, destaca o novo romance de Arquelana, As Regras do Jogo, que também narra a história de amor entre duas mulheres, mas no basquete universitário: “É um universo em crescimento e que, se antes tínhamos praticamente só livros traduzidos nesse segmento, agora temos cada vez mais autores brasileiros, como a Arquelana, entrando nessa seara, o que é muito bacana, porque aproxima as histórias da realidade dos leitores e amplia o leque de esportes abordados. É bom ficar de olho!”
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