Stênio Gardel: ‘Inventar é a diversão da narrativa'

Autor fala sobre sua apuração poética no romance de estreia ‘A Palavra que Resta’

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Por Alessandro Hernandez
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Como funcionário do Tribunal Regional Eleitoral em Fortaleza, Stênio Gardel observou que muitas pessoas não sabiam assinar o nome e carimbavam o dedo no documento. Foi o mote para a escrita de A Palavra que Resta (Companhia das Letras), primeiro romance do escritor, que traz como personagem principal Raimundo, homem de 71 anos, que tem o desejo de se alfabetizar para conseguir ler uma carta que recebeu do namorado quando tinha apenas 19.

Stênio Gardel, autor do livro 'A Palavra que Resta' Foto: Fernanda Oliveira

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O livro, que se divide em muitos e breves capítulos, narra a trajetória desse personagem de forma não linear, em dois tempos: o passado, na sua juventude, quando se apaixona por Cícero e eles começam a namorar de forma velada, já que vivem em uma região na zona rural onde pessoas como eles, nas palavras de seu pai, são “gente torta, povo imundo, sujo”; e o presente, quando vive em uma capital e já está aprendendo a ler para conhecer a carta deixada por Cícero, 52 anos antes. A escrita de Stênio, no trânsito entre o passado e o presente de Raimundo, é marcada por uma constante qualidade no uso das palavras, com uma cuidadosa apuração poética, e traz a expectativa do leitor em saber o que acontecerá nas próximas páginas, já que o segredo contido na carta se mantém até o final do livro.

Se o mote do romance não é o retrato de um personagem homossexual e suas questões entre viver ou esconder tal condição, a trama transborda para esse universo e apresenta figuras que dialogam com essa dicotomia. Para além de aprender a ler e conhecer o conteúdo da carta, Raimundo caminha para um descobrir-se e aceitar-se, e tem ao seu lado uma das personagens mais cativantes do livro: Suzzanný, uma travesti que, no início, ele rejeita e até agride fisicamente, mas que, aos poucos, se tornam amigos e vivem juntos. 

Ao se conhecerem, na saída de um cine pornô, ele demonstra por ela o mesmo sentimento de seu pai: considera Suzzanný um ser abjeto e monstruoso. Mas o querer de Raimundo o transforma tanto a partir do aprendizado das palavras como na convivência com os outros e na relação consigo próprio. Stênio Gardel realiza, em seu primeiro romance, uma obra encantadora. Confira a entrevista com o autor ao Estadão, realizada por e-mail.

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Você nasceu em Limoeiro do Norte e se mudou para Fortaleza aos 17 anos. No livro, acompanhamos Raimundo saindo de uma cidade não especificada, mas com características de ser uma zona rural, indo em direção a uma capital. A partir disso, onde podemos apontar paralelos com sua biografia e como você entende a literatura no sentido de que é a partir do eu do escritor que ela pode despertar um olhar para a realidade que nos cerca? A experiência e a vivência do escritor participam profundamente da feitura do texto literário, no meu ponto de vista. É matéria-prima, recurso que se mistura à imaginação na fundação dessa outra realidade. Pensando assim, concordo com você, que o olhar do escritor traz também a realidade para a realidade fundada na ficção. Mas isso não significa que tudo que está no livro, no meu caso, seja reflexo da minha própria vida. Sim, há aproximações, como a que você citou, mas, veja, a saída da zona rural para mim teve motivos diametralmente opostos aos de Raimundo: eu ia para estudar, fazer faculdade, e sempre incondicionalmente apoiado pela família, algo que infelizmente o Raimundo não teve. Expandindo o raciocínio, a minha experiência positiva pode sim ter contribuído na construção da experiência negativa do personagem, quer dizer, ainda assim, está lá o meu olhar para o mundo.

Raimundo, o protagonista, traz em seu nome a alcunha de imundo. No livro Quase Nome, a organizadora Socorro Acioli traz 23 contos que apresentam o que significa ter ou ser um nome. E lá encontramos um conto de sua autoria. Neste sentido, o quanto essa experiência auxiliou na escrita do romance?  Apesar de ter sido publicado antes, o conto A Memória do Nome, que é meu texto no Quase Nome, foi escrito depois da primeira versão do A Palavra que Resta, que já continha o capítulo Imundo. Então, a relação entre os dois na verdade foi inversa. A forma do texto no conto tem um pouco da forma de alguns capítulos do romance – o fluxo de pensamento em primeira pessoa, com poucos pontos finais, com certa não linearidade no encadeamento de ideias.

A professora de Raimundo, Ana, diz que, na poesia, “uma palavra diz muito mais do que diz” e que as palavras “esticam o horizonte da gente”. Não faltam, no romance, pequenas pílulas poéticas que expandem o lugar comum do cotidiano. Você pode falar sobre como vê isso em sua obra e como a poesia brota desta realidade?  A literatura que mais me encanta é essa que me desperta pela palavra, por usos inesperados de voz narrativa ou de manipulação do tempo narrativo, por imagens surpreendentes; que conta a história usando as possibilidades da palavra para contá-la de uma maneira refratada. Fico muito feliz que o livro tenha um pouco disso, mas não são trechos ou frases planejadas, elas surgem da porção espontânea do processo, e só então podem ser trabalhadas nas revisões para que eu tenha certeza que são as palavras exatas. Acho que isso pode vir exatamente das minhas leituras, que me oferecem a chance de reler a realidade, e essa minha releitura ou olhar, por sua vez, está também intricada no processo de escrita. 

As personagens do romance são contraditórias e carregam muitas dualidades, sempre pautadas pela ideia de que o meio social determina essas características. Destaco a personagem de Suzzanný como o oposto dessas contradições. Há uma inteireza nela, uma certeza das coisas, e é ela quem impulsiona muitas mudanças na personagem de Raimundo. Como se deu a escrita e construção das personagens? Inventar, tanto o enredo quanto as personagens, é muito bom, uma das partes mais divertidas de todo o processo. Acho que tudo começa na ideia central: eu tinha duas imagens: a de pessoas de idade que não sabiam ler e escrever, tendo que carimbar o dedo nos documentos e a de um homem que possuía algo muito importante para ler, mas não podia ou não conseguia. A junção das duas formou a premissa inicial e dela vieram perguntas: quem é esse homem? o que ele não consegue ler? por que não consegue? Então, passo a buscar respostas para estas perguntas e os personagens (e a trama também) vão surgindo e ganhando suas primeiras características. No caso de A Palavra que Resta, os primeiros a surgir foram Raimundo, Cícero e a carta, como ligação entre os dois primeiros. No desenvolvimento dos três foram surgindo os demais. À medida que eles se tornam pessoas da realidade do livro, o objetivo é este, procurar humanizá-las, com experiência de vida, sentimentos, pensamentos, atitudes, reações, e ser contraditório, dual e até múltiplo, é parte do que é ser humano. A Suzzanný tem inteireza, gostei muito desta palavra para ela, depois de tudo que ela viveu, mas acho que ela também foi insegura quando falou com o pai, como ela mesma diz que estava. Ela conquista a certeza de quem é, e ela é assim exatamente para fazer contraponto ao Raimundo, no momento em que eles se encontram.

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O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, se dá a partir de muitas cartas escritas e lidas pelas personagens. Em A Palavra que Resta, há apenas uma carta que norteia todo o livro. É ela que impulsiona em Raimundo o querer de se alfabetizar. Você diria que seu romance é também um tratado de amor?  Honestamente, não sei, acho “tratado de amor” tão grande, tão suntuoso. Não que o amor não esteja no livro – está, e de muitas formas, mas talvez o mais latente seja esse gostar de nós mesmos. Não bem-querer o que somos é limitante, acho, nos afasta dos nossos potenciais, das nossas forças; pode nos fazer muito mal e nos levar a fazer muito mal a outras pessoas, inclusive a pessoas que amamos. Parte de amar é doar e como vamos doar algo de que nós mesmos não gostamos?

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