“A Natureza nunca foi avara em criar grandes talentos, mas falta muitas vezes em dar ao mundo quem os entenda.” O poema que abre Pauliceia Desvairada (Mário de Andrade, 1922) reproduz como epígrafe trechinho de Fr. Luis de Sousa: “...até na força do verão havia Tempestades de ventos e frios de crudelíssimo inverno”. Por que uma primeira obra modernista tem como epígrafe um prosador português seiscentista? Copiando Mário de Andrade, recorro ao mesmo Frei – também como epígrafe – para exprimir uma das marcas maiores e mais interessantes da Semana de Arte Moderna: seus desencontros com o cenário em que ocorreu.
No início da terceira década do século passado, o Brasil tinha 30.635.605 habitantes e São Paulo, 6.592.189. Dessa multidão, o censo informa que apenas 35,1% de maiores de 15 anos sabiam ler e escrever. A melancólica parcimônia do número de leitores justifica uma interpretação metafórica da epígrafe que Mário escolheu para o poema de celebração de São Paulo? Não se sabe... De qualquer forma, foi para um desolado panorama letrado que O Estado de S. Paulo, em 11, 15 e 17 de fevereiro de 1922, na mesma página em que publicava a programação de cinemas, anunciava a realização de uma Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal. Os ingressos mais baratos para ela custavam (para o último dia) 5 mil réis enquanto uma entrada de cinema custava 2 mil. Nos anúncios do evento, a informação de uma exposição de pintura e escultura no saguão do teatro e destaque para participantes como Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho e – em letras garrafais – Villa-Lobos e Guiomar Novaes. De modestos anúncios de jornal a livros e cursos contemporâneos de Literatura Brasileira, a Semana de Arte Moderna de São Paulo ganhou prestígio: passou a ser interpretada como marco maior da modernização literária brasileira. A conferência de Graça Aranha que abriu o evento, A Emoção Estética na Arte Moderna, se iniciou provocando a assistência, ao postular o estranhamento/espanto com que seriam recebidas as apresentações das três noites do festival. Ainda que se atribua uma eventual ironia ao conferencista, sua fala pode ser considerada premonitória. “Para muitos de vós, a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje, é uma aglomeração de ‘horrores’. Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros ‘horrores’ vos esperam. Daqui a pouco, juntando se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo.” Graça Aranha acertou em cheio... Algumas das programações foram mesmo sonoramente vaiadas. Mas, muito embora não tivesse tido muito impacto cultural durante sua realização e em seus arredores – desconsiderando polêmicas e fusquinhas que talvez não ultrapassassem muito os limites da cidade das letras daquela época –, a Semana de Arte Moderna passou a constituir um marco para a produção literária brasileira tanto a que a precedeu, como a que veio na sua sequência. Tornou-se marco tão importante que a produção de escritores como Lima Barreto e Monteiro Lobato é confinada ao rótulo de pré-modernista, enquanto o rótulo pós-modernista ou modernistas de segunda geração abriga (ainda que temporária e equivocadamente) tanto o regionalismo de José Lins do Rego como a poesia de Drummond de Andrade. Financiada pela alta burguesia paulista – representada, por exemplo, por Paulo Prado, responsável, pela cessão do Teatro Municipal –, a SAM foi um dos elos da cadeia de eventos que deu expressão cultural à importância econômica de que São Paulo desfrutava, e queria ver reconhecida. E a Semana cumpriu brilhantemente esta função. E, cumprindo este importante papel político-econômico-cultural, cem anos depois vemos que valores, temas e procedimentos formais por ela propostos vingaram. Mas ... ...não vale a pena incluir – na celebração de centenário dela – a hipótese de que as inovações literárias que a ela são atribuídas pelos estudos literários mais canônicos talvez não tenham sido fruto exclusivo do esforço de seus participantes? Talvez valha. Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Juó Bananere e Hilário Tácito – para ficar apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro –, por exemplo, já traziam para seus textos preocupações e procedimentos de ruptura com a tradição. Talvez seja muito produtivo conceber a hoje centenária SAM como ponto de uma curva que, iniciando-se pelo menos duas décadas antes de 1922, continuou a desenvolver-se posteriormente, gerando novas designações. São às vezes expressões que até hoje suscitam debates apaixonados: segunda geração modernista, segundo Modernismo, chegando até o hoje proclamado Pós-Modernismo... Toda esta minha rabugice não impede, no entanto, reconhecimento da alta qualidade e grande importância de textos que, inspirados nela e articulados a suas propostas, seduzem até hoje leitores brasileiros, como o poema abaixo transcrito que pinga ponto final neste meu texto:
Tietê (Mário de Andrade) “Era uma vez um rio... Porém os Borbas Gatos dos ultranacionais esperiamente! Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo As monções da ambição... E as gigantes vitórias! As embarcações singravam rumo do abismal Descaminho ... Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!... Ritmos de Brecheret!... E a santificação da morte!... Foram-se os ouros!... E o hoje das turmalinas!... – Nadador! Vamos partir pela via dum Mato-Grosso? – Io! Mai!... (Mais dez braçadas. Quina Mignone. Hat Stores. Meia de seda.) Vado a pranzare com la Ruth”.
Livros celebram várias faces da Semana de 1922, antes e depois
Os livros têm papel primordial por documentar, analisar e interpretar o que aconteceu antes, durante e depois da Semana, que movimentou o Teatro Municipal de São Paulo e, ao longo das décadas, vê-se em Lira Mensageira, espalhou-se pelo Brasil. Das origens, Semana de 22, Antes do Começo e Depois do Fim tenta compreender os fenômenos que levaram os criadores a se rebelarem contra as artes acadêmicas para remodelar a cultura nacional. Uma agremiação de elite, sem dúvida, retrata Peregrino Jr. em É Apenas Agitação. Os artistas que participaram da Semana são contemplados com lançamentos, como o estudo que analisa a indumentária de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, O Guarda-Roupa Modernista, de Carolina Casarin. Outra personagem icônica é Pagu, a multiartista cujo romance proletário Parque Industrial é relançado. E, por falar em reedições, um clássico sai repaginado, Vanguarda Europeia & Modernismo Brasileiro, de Gilberto Mendonça Teles. Há também estudos feitos a várias mãos, como Modernismos, 1922-2022, organizado por Gênese Andrade, que conta com ensaios de intelectuais, como Elias Saliba. Da nova safra, Mário de Andrade é protagonista em vários livros (Inda Bebo no Copo dos Outros e Mário por Ele Mesmo), além do box que divide com Carpeaux e o estudo com Rubem Braga e Walmir Ayala. Na Estante, as crianças também estão convidadas a entender o que foi a Semana, com dois novos livros, um passeio pela época com Tarsilinha e as Cores e Nasci em 1922. M.L.Q.
Vanguarda Europeia & Modernismo Brasileiro Autor: Gilberto Mendonça Teles Editora: José Olympio 658 páginas. R$ 109,00
Modernismos 1922-2022 Gênese Andrade Editora: Companhia das Letras 272 páginas. R$ 159,90 / R$ 49,90 (E-book)
Semana de 22: Antes do começo, depois do fim José De Nicola, Lucas De Nicola Editora: Estação Brasil 648 páginas. R$ 84,00
O Guarda Roupa Modernista Autor: Carolina Casarin Editora: Companhia das Letras 288 páginas. R$ 109,90 / R$ 44,90 (E-book)
1922 e depois Autores: Mário de Andrade, Rubem Braga e Walmir Ayala Editora: Nova Fronteira 168 páginas, r$ 24,90 (livro) r$ 16,99 (e-book)
Lira Mensageira Autor: Sérgio Miceli Editora: Todavia 264 páginas. R$ 74,90 (livro) r$ 49,90 (e-book)
Parque Industrial Autor: Pagu Editora: Companhia das Letras 112 páginas. R$ 49,90 (livro) r$ 29,90 (e-book)
Mário de Andrade por ele mesmo Autor: Paulo Duarte Editora: Todavia 576 páginas. R$ 99,90 (livro) r$ 64,90 (e-book)
Modernidade em Preto e Branco Autor: Rafael Cardoso Editora: Companhia das Letras 372 páginas. R$ 99,90 (livro) r$ 39,90 (e-book)
Modernismo ― do surgimento no mundo à explosão do movimento no Brasil Autor: Otto Maria Carpeux e Mário de Andrade Editora: Faro editorial 272 páginas. R$ 99,90 (livro) r$ 39,90 (e-book)
Tarsilinha e as Cores Autor: Engel Secco, Patrícia / do Amaral, Tarsilinha Ilustrador: Alhadeff, Cris Número de páginas: 24 Preço sugerido: R$ 25,00
Inda bebo no copo dos outros: Por uma estética modernista Yussef Campos (Organização), Mário de Andrade (autor) Autêntica 224 páginas
É apenas agitação: A semana de 22 e a reação dos acadêmicos nas célebres entrevistas de Peregrino Júnior para O Jornal Autora: Nélida Capela Editora: Telha Páginas: 196 Preço: R$ 45,00
A Revista Verde de Cataguases Luíz Ruffato Editora:Autêntica. 198 págs. R$ 49,80, o livro, R$ 34,90, o e-book
Nasci em 1922, ano da Semana da Arte Moderna Autor(es): Fabiano Moraes Ilustrador(es): Luciano Tasso Páginas: 112 Editora do Brasil
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