No calor de tensões políticas, no Brasil e no mundo, é que Thiago de Mello completa este mês 90 anos de vida. A coincidência, não apenas circunstancial, também um poema incidental dos nossos tempos, atualiza o espírito de uma literatura de resistência que se tornou a marca humana deste amazonense em seus 65 anos de paixão pela poesia. Thiago de Mello é um nome que nunca vem só. Acompanha-o toda uma família de poetas latino-americanos, os chamados poetas solidários, que, nas décadas trevosas de 1960 e 1970, lutaram para dar voz a um sentimento de resistência, quando resistir implicava ser perseguido, preso, torturado e morto.
Como o uruguaio Mario Benedetti, perseguido, exilou-se. Como o tocantinense Pedro Tierra, foi preso e na noite de solitária escreveu poemas. Como o nicaraguense Ernesto Cardenal, propagou um senso de fraternidade entre os povos da América. Ao lado de Pablo Neruda (que o acolheu em sua Chascona, no Chile), cantou a força e a miséria da gente simples do campo. Nomeou o outro seu companheiro, seu irmão, convocando-o para uma luta de mãos dadas contra o regime do medo e do silêncio. Fez da utopia uma militância poética que foi largamente difundida, traduzida para várias línguas, com Os Estatutos do Homem, do livro Faz Escuro Mas Eu Canto, de 1965.
Existencial, social, lírico, “filho da floresta”, Thiago de Mello tem todos esses atributos reunidos numa poesia despretensiosa e literalmente fundamental. Poesia que fala da mistura secular de sangues do povo brasileiro, que lhe é familiar desde Barreirinha, sua terra natal no meio da floresta amazônica. Poesia que fala com outros escritores e artistas que admira, com os quais se identifica em seus motivos de criação e de luta. A imagem do homem simples e sábio das coisas da terra corresponde aqui à do poeta que planta a palavra para semear a chegada do homem novo. É a noção de verbo feito matéria, amálgama possível entre o dizer e o fazer, o que forma essa pátria literária vizinha de povos com mesma herança e esperança de “sangues e cantos abraçados”: “Incas, ianomamis, tiahuacanos, astecas, / mayas, tupi-guanaris, (...) / ritmo pungente, / rumba, milonga, tango, marinera, / samba-canção”.
Como não perceber a atualidade desses “altos fabricantes de justiça, / que decidem de sortes e destinos”, contra os quais alguns poetas ainda ousam responder com “a arma do amor em ação”? Mesmo havendo os já desencantados, os que hoje se dedicam a provocar estranhamento no outro, também existem aqueles que confiam numa palavra em que o outro se reconheça, uma palavra que, posta à prova em excelentes exercícios de desilusão e desânimo, ainda seja capaz de falar por nós. Estão aí, nesses que se reconhecem, os parentes próximos de Thiago de Mello e seus irmãos continentais. Há 20 anos, neste mesmo mês de março, o poeta renovava seu voto de resistência num poema que dizia: “Levo, flâmula, a confiança / de que amor há de erguer / no chão do mundo: a utopia”. Que siga sendo assim, “ardendo a flâmula”.
MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, ENTRE OUTRAS OBRAS
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.