‘Todo mundo pode acionar uma força imensa dentro de si quando é necessário’, diz Roseana Murray

A escritora foi atacada por pitbulls no início de abril e perdeu o braço direito. Agora, lança livro infantil ‘O Braço Mágico’, em que busca ressignificar o trauma da experiência. Ela fala ao ‘Estadão’ sobre a recuperação, a importância da poesia e como vê a vida após sobreviver

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Foto do author Julia Queiroz
Atualização:
Foto: Acervo pessoal de Roseana Murray
Entrevista comRoseana MurrayEscritora

Quando a escritora e poeta Roseana Murray, de 73 anos, descobriu que havia perdido o braço direito, ela afundou. Na manhã de 5 de abril, ela saía de sua casa em Saquarema, RJ, para uma caminhada, quando sua vida mudou para sempre ao ser atacada por três cães da raça pitbull. Foi resgatada. Seu estado era gravíssimo. Ela sobreviveu.

Se recuperando de cirurgias, ela enfrentava o maior desafio da sua vida. Sentia dores intensas, como nunca havia sentido antes, e precisava de cuidados recorrentes. “Eu colhia sangue toda hora, estava cheia de coisas penduradas. Era um circo dos horrores”, diz a escritora, em conversa por vídeo com o Estadão. Foi então que resolveu enfrentar a situação da forma como sempre soube: escrevendo.

Foi ali, no CTI do Hospital Estadual Alberto Torres, que ela teve a ideia de escrever o livro O Braço Mágico, que está sendo lançado pela Estrela Cultural. Com ilustrações de Fernando Zonshô, a obra infantil conta a história de uma senhora e seus netos - a avó tem um braço mágico, capaz de levá-los a lugares extraordinários.

Entre a imaginação e a realidade, o livro ressignifica a perda do braço. É, também, uma demonstração de amor aos netos Luís, de 15 anos, e Gabi, de 11, e de gratidão aos amigos, familiares, médicos e enfermeiras que cuidaram de Roseana, além das muitas pessoas que enviaram mensagens positivas e de carinho, torcendo por sua recuperação.

“Acredito muito que somos energia. Imagino que toda essa onda monumental de amor me ajudou a sobreviver - e ajudou meu corpo a responder tanto que até os médicos ficaram impressionados”, diz ela. “Quando você fala com uma pessoa com um sorriso e uma palavra boa, algo nela floresce. É um milagre que acontece com a pessoa.”

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Os desafios ainda são muitos. Ela sofre muito com dores fantasmas, problema comum a quem perde um membro, e ainda se adapta para viver apenas com a mão esquerda. Mesmo assim, está pronta para seguir em frente. À reportagem, ela afirma que não pensa mais no ataque, e nem quer saber se os tutores dos pitbulls serão presos - na verdade, prefere que não sejam.

A escritora agora volta aos poucos à rotina, está ansiosa para o lançamento de seu livro e acredita que, após sobreviver, deve viver com mais alegria do que nunca. Nesta entrevista, editada para melhor compreensão, ela fala sobre O Braço Mágico, sobre como a poesia a ajuda a lidar com o trauma e conta se enxerga a vida diferente agora.

Depois de tudo o que aconteceu, como a senhora está sentindo nesse momento?

É tudo um processo. Eu fiquei 20 dias internada em duas etapas diferentes. Foram 13 dias na UTI e, depois, vim para casa, mas tive que voltar [ao hospital] porque as feridas precisavam de antibiótico na veia - lá fiquei também mais 7 dias. É todo um processo mesmo de chegar em casa e aprender a fazer as coisas com a mão esquerda. Eu sou destra.

Eu comprei o livro A Faca, do Salman Rushdie. Ele foi atacado [lembre aqui] e ficou hospitalizado por 18 duas. Ele fala da alegria dele de poder colocar pasta de dente na escova com a mão esquerda. Então, são pequenas alegrias que você vai tendo ao aprender a fazer as coisas com um lado que não era o teu lado dominante. É muito difícil.

No mais, eu tenho muita dor fantasma no braço fantasma e na mão, principalmente. É uma coisa de maluco, não dá para explicar e a pessoa que está ouvindo jamais poderá entender. Sou paciente de dor crônica desde 1994. Sou uma paciente acostumada a ter dor, mas o nível dessa eu nunca havia sentido. É horrível mesmo, principalmente por ser uma coisa de maluco. É uma mão e um braço que não existem, entretanto, causam essa dor.

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A senhora decidiu escrever ‘O Braço Mágico’ ainda internada, certo? Como foi esse momento?

Sim, mas eu escrevi em casa. Foi muito pouco tempo depois de eu tomar conhecimento de que tinha perdido um braço, que é uma coisa de uma gravidade monumental em todos esses sentidos. Eu podia ter morrido. Eu passei por um momento de vida e morte. Quando soube que eu não tinha um braço, realmente afundei. É aí que eu tiro essa ideia: ‘não, eu vou escrever um texto para crianças. Vou reverter isso’. Foi muito bom.

Estou muito animada para o lançamento e apavorada ao mesmo tempo porque eu nunca tive mídia para nada. É muita expectativa em torno de um texto para crianças muito pequeno. É um texto biográfico. Eu tive essa ideia do braço mágico e realmente foi uma boa ideia porque me ajudou muito. É um braço que não existe, mas existe. Ele é mágico, me traz coisas boas e ajuda muitas pessoas.

Ilustração de Fernando Zenshô para o livro 'O Braço Mágico', de Roseana Murray. Foto: Fernando Zenshô /Estrela Cultural/Divulgação

Como a senhora conseguiu converter esse episódio tão traumático em algo tão bonito?

Eu sou poeta. Esse é meu ofício. Então essa conversão para mim é fácil. Desde o momento em que eu soube que eu faria isso, eu soube como faria. Se não fosse um livro com poesia, não teria graça nenhuma. É bastante onírico e o ilustrador é maravilhoso.

Como a poesia nos ajuda a seguir em frente?

Ela te dá uma outra dimensão da vida, ela afia o teu olhar. Se você lê ou escreve poesia, ela te dá um caminho paralelo, porque o mundo anda péssimo, né? A poesia faz com que você veja de forma que tudo o que está acontecendo tenha importância. Se eu olho pela minha janela, é muito importante o vento mexendo, as folhas de uma palmeira linda que está sobre o telhado. Tudo isso, eu vejo como poeta - e ler poesia também me produz emoções monumentais.

Escrever é uma forma de processar o que aconteceu?

Sim. É uma forma, como diz a minha psicanalista, de dar a volta no trauma, de não ficar aprisionada. Estou em movimento. Quando eu coloco uma sereia sem braço é uma representação da minha pessoa sem braço. Porque eu tenho que me olhar no espelho e me achar bonita sem o braço. Estou sem braço, vou fazer o quê? Logo vou estar com uma prótese, e aí vai ser uma outra imagem que eu vou ter que processar. É uma maneira certamente [de processar]. É preciso falar, porque o trauma foi muito grande.

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De onde a senhora tira essa força para colocar as coisas no papel e continuar trabalhando?

Acho que todo mundo pode acionar uma força imensa dentro de si quando é necessário. Se você deixar, vai afundar em qualquer circunstância difícil da sua vida. A vida é tudo o que está na vida. Às vezes, são coisas horrendas e você tem que viver aquilo. A vida é um caos, não acho que você é escolhida. É um paradoxo. Moro na cidade mais calma do Brasil, nada de ruim acontece aqui e isso me aconteceu. Eu tenho que viver isso.

Todo mundo pode acionar uma força imensa dentro de si quando é necessário. Se você deixar, vai afundar em qualquer circunstância difícil da sua vida.

Roseana Murray

Os seus netos são os protagonistas do livro. A senhora parece ter uma relação de muita cumplicidade com eles. É isso mesmo? Eles sabem que são os protagonistas do livro?

Tenho. Não próxima fisicamente porque a minha neta mora em Visconde de Mauá (RJ), mas quando eu vou, nós ficamos grudadas. E o meu neto mora em uma escola de música. É muito interessante porque toda a minha família trabalha em casa e todo mundo é artista. A minha neta mora dentro de um restaurante e o meu neto mora dentro de uma escola de música em Resende (RJ). Nós também temos muita cumplicidade.

Eles não viram o livro ainda, mas sabem que estão nele. Eu mandei quando eu escrevi e eles acharam lindo. Meu neto sempre fala: ‘que lindo, vó’. E minha neta fala: ‘legal!”. Eles estão em outros e-books e livros digitais que tenho gratuitamente no meu site.

A senhora escreve para todas as idades, mas tem muitos livros infantis publicados. Por que gosta de escrever para crianças? Muda algo?

Tenho várias claves dentro de mim, a para adultos, a para jovens e a para crianças. E eu escolho escrever para crianças porque me divirto. Eu não me divirto tanto quando escrevo para os jovens porque eles estão numa fase de angústia, de confusão. Então, busco me lembrar disso, de como eu era com 14 anos. Eu era era angustiada, me achava feia.

Roseana Murray em imagem registrada em 2023, antes da escritora ser atacada por três pitbulls. Foto: Bia Hetzel/Divulgação

Muitos adultos deixam de dar espaço para a imaginação quando crescem. Por quê? Qual é o papel da imaginação no seu trabalho?

Muitos perdem porque a escola não propicia isso, é uma pena. Mas um poeta não perde. Se ele perder, não vai ser poeta. Um escritor tem que ter imaginação. Olha o Gabriel García Márquez, que escreveu tantos livros do realismo mágico. O que tem que acontecer é um pacto entre o autor e quem está lendo. Quem está lendo tem que acreditar naquelas coisas que não são do mundo real, mas fazem parte da imaginação humana.

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Tudo o que tudo que existe foi imaginado antes. Olha Júlio Verne: inventou o submarino, a viagem à Lua. Só não chegamos ao Centro da Terra. Os autores sempre são profetas. Os poetas também. A imaginação é extraordinária. É isso nos separa dos outros animais.

O que tem que acontecer é um pacto entre o autor e quem está lendo. Quem está lendo tem que acreditar naquelas coisas que não são do mundo real, mas fazem parte da imaginação humana.

Roseana Murray

Já se passaram quase quatro meses desde o acidente. Como a senhora enxerga isso hoje?

Não enxergo. Já não penso nisso. Já passou. Agora é seguir em frente. Me preparar para a prótese, colocá-la, me acostumar e seguir trabalhando. Estou cheia de coisas boas para fazer.

Os tutores dos cachorros que a atacaram se tornaram réus. A senhora está acompanhando o processo ou prefere não saber?

Não me interessa. Realmente não tenho interesse. Gostaria que eles não fossem presos de jeito nenhum porque não adianta nada. Quem é preso no Brasil sai doutor honoris causa em crime. Eles não botaram os cachorros na rua para matar alguém. Eles foram displicentes. É isso.

A senhora vê a vida diferente agora?

Vejo que temos que aproveitar muito, ainda mais eu que tenho 73 anos. Ganhei outra chance de vida. Precisamos realmente viver com alegria, apesar do mundo estar pavoroso. Como disse Guimarães Rosa, mesmo na pior das tristezas, você tem que ter alegria.

O Braço Mágico

  • Autora: Roseana Murray
  • Ilustrador: Fernando Zenshô
  • Editora: Estrela Cultural (32 págs.; R$54,90)
  • Lançamento: 10/8, às 11h30, na Livraria Janela do Shopping da Gávea (R. Marquês de São Vicente, 52 - Gávea, Rio de Janeiro)

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