Foi no banheiro de um hotel, na hora do almoço, depois de ouvir alguém vomitando e de descobrir que se tratava de uma garota de cerca de 15 anos que Thalita Rebouças decidiu escrever sobre um tema que já vinha rondando, mas que ela relutava em encarar: os transtornos alimentares. Na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que começa hoje, 30, e vai até o dia 8, no Riocentro, ela lança Confissões de Uma Garota Linda, Popular e (Secretamente) Infeliz, com sessão de autógrafo no estande da Arqueiro nos dias 31, 1.º, 7 e 8 e uma conversa na Arena #semfiltro sobre outro livro dela: Ela Disse, Ele Disse.
Autora de sucessos como a séries Fala Sério e Confissões, e sempre uma das principais atrações da Bienal, Thalita Rebouças falou com o Estado sobre o livro novo.
O que motivou a escrita desta obra e como isso foi desafiador? Transtornos alimentares é um tema que me pedem desde que eu comecei a escrever. Eu relutava muito porque o humor está sempre presente nos meus textos e eu nunca soube como abordar um tema tão duro. Foi meu grande desafio.
Como foram as pesquisas? Além de ler muito sobre o assunto, eu tenho a sorte de ter uma psicóloga, a Elaine Chagas, que é especializada em crianças e adolescentes. Ela foi minha enciclopédia e eu pude conversar muito com ela e com outros médicos. Fiquei bastante assustada em ver a incidência de jovens neste quadro. Quanto mais eu estudava o tema, mais eu achava que estava certa em escrever sobre ele.
Nesses anos todos de contato com seus leitores, você deve ter presenciado ou tomado conhecimento de vários tipos de transtornos que os meninos e as meninas estão desenvolvendo. Como é essa interação com seus leitores, como isso te toca e se transforma em assunto para seus livros? Eu entendi que transtornos alimentares, assim como a depressão, é uma doença silenciosa. O adolescente não fala sobre isso, tanto que quem sempre me pedia livros sobre esse tema eram os pais. Recentemente, soube de duas leitoras minhas, que me acompanham há anos, que tentaram suicídio. É algo de que preciso falar também. Suicídio nunca pode ser uma opção. A série Confissões marca uma mudança na minha carreira. Com ela eu aprendi a falar sobre temas delicados e importantes como bullying, preconceito, homofobia e agora transtornos alimentares.
Com a idade de sua personagem, conhecia alguém com algum transtorno alimentar ou esse é um mal dessa geração? Eu lembro que aos 17, 18 anos eu não gostava do meu corpo, em tudo via defeito. Era como se eu tivesse um espelho distorcido. Não me lembro de conhecer ninguém que tivesse transtornos alimentares. Eu realmente acho que esse tema é algo mais atual, de agora, das redes sociais, vindo dessa ideologia absurda dos padrões perfeitos e inatingíveis de beleza.
Quem é Valentina? Como ela vê o mundo? Que peso ela carrega e como ela lida com as angústias? A Valentina é uma menina linda, que se vê muito errada no espelho. Ela não entende porque tem tanta atenção das pessoas. Ela não sabe lidar com suas angústias: tem um pai ausente, uma mãe opressora, sempre ligada no peso dela. A Valentina tem vários vazios dentro dela. E quem não tem, né? Esse livro vem mostrar que em vez de tentar preencher os vazios com vícios, drogas, transtornos alimentares, a gente pode aprender a conviver com eles. Quanto mais a gente aprende a lidar com os nossos vazios, menores eles ficam.
Seus livros são escritos com algum propósito? Meus livros são escritos com o propósito de fazer pensar. Eu nunca digo o que é certo ou errado. Esse livro foi muito difícil de escrever. Eu tive pena da personagem. Enquanto escrevia, eu parei várias vezes. Espero que o adolescente se reconheça na Valentina e veja que mesmo a menina mais invejável e mais desejada da escola é extremamente infeliz. Todo mundo tem um problema, a vida de ninguém é instagramável.
E você deve escrever outros livros sobre outros tipos de distúrbios, transtornos, etc? Eu encerro a tetralogia Confissões no ano que vem com um livro sobre o Zeca, que é o personagem mais querido. Não pretendo mais falar sobre transtornos alimentares, porque acho que a Valentina cumpriu o seu papel. Fiquei feliz com o resultado e tenho certeza que vou ajudar muita gente com ele. A ideia do livro surgiu quando eu estava em um hotel e eu ouvi, depois do almoço, alguém vomitando na cabine do banheiro. Quando a pessoa saiu, vi que era uma menina que devia ter no máximo uns 15 anos. Ela me reconheceu e saiu correndo. Eu fiquei sem reação. Cheguei a ir atrás dela, mas não consegui alcançá-la. Eu me senti culpada de não ter conseguido conversar com ela sobre o que estava acontecendo. Na volta pra casa, eu decidi que tentaria, por meio dos meus livros, ajudar outros adolescentes que tivessem passando por algo semelhante.
Confissões de Uma Garota Linda, Popular e (Secretamente) Infeliz
Autora: Thalita Rebouças Editora: Arqueiro (256 págs.; R$ 39,90)
Leia o trecho inicial do novo livro de Thalita Rebouças
"Numa manhã de céu bem azul e temperatura perfeita, nem muito frio, nem muito calor, acordei triste. Arrasada. Deprê. Péssima. Logo eu, que na opinião das pessoas em geral tenho todos os motivos para ser profundamente feliz, só por ser loira, popular, rica e também ter fama de linda. Justo eu, que (todo mundo pensa) levo uma vida de sonho, de conto de fadas. Mas a verdade é que não é raro eu amanhecer assim. E também não é raro eu ir dormir assim.
Meu café da manhã naquele dia não ajudou em nada a melhorar meu estado de espírito, que deu mais uma caída quando minha mãe comentou com minha avó que eu iria fazer um curso. Mais um. Há uns anos, descobri que uma boa maneira de matar os pensamentos ruins que invadem minha cabeça é me distraindo, e a melhor distração para mim é fazer cursos, um jeito bom de conhecer universos diferentes do meu. Só que eu sempre recebo críticas em casa.
– Mas precisa fazer curso pra aprender a costurar? Vovó te ensina! – decretou a mãe do meu pai e dona da casa gigante e luxuosa onde moro com ela e meus progenitores desde sempre.
– Aliás, eu já te ensinei quando você era menorzinha, lembra?
– A Valen está na idade de experimentar, dona Elvira, de testar as habilidades. Ela quer ser modista, então nada mais justo do que um curso de corte e costura! – argumentou minha mãe, sempre querendo que eu “amplie horizontes”, como ela gosta de falar.
– Ela quer ser modista, Petúnia? É esse o futuro que a Valentina está imaginando? – disse minha avó, indignada.
– Não é modista, mãe! É estilista... – corrigi, enquanto desenhava no meu Moleskine.
Era nele que eu anotava tudo sobre moda e rabiscava vestidos que um dia eu sonhava fazer.
– Sinceramente? Não vejo a menor necessidade! – Vovó aumentou o tom de voz: – Essa menina não precisa fazer todo curso que aparece pela frente!
Lá vem..., pensei. Minha avó sempre adorou implicar comigo, mas, verdade seja dita, foi com ela mesmo que aprendi a botar linha na agulha, a pregar botão, a dar ponto... Eu me lembro de sentar no colo dela e achar uma delícia aquele barulhinho da máquina de costura, e adorava quando ela sorria feliz por me ensinar uma coisa para a qual eu levava jeito desde pequenininha.
Infelizmente, da minha infância para cá, eu e ela nos distanciamos, muito por conta das brigas que ela tem com minha mãe. E comigo, por tabela. Mas, sério, as duas vivem discutindo. É muito duro todo mundo ter uma avó fofinha e a minha ser, assim... como é que eu vou dizer? Não fofinha. Bem não fofinha. É o velho clichê de sogras e noras... Essa briga rola não só em filmes, livros e séries, mas na vida real também, e ela é bem real na minha casa.
Só crescendo no meio disso pra saber. (...)"
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