Verity, Pessoas Normais e Cleópatra e Frankenstein são três dos livros mais famosos do BookTok, nicho do Tiktok dedicado à literatura. As obras não poderiam ser mais diferentes, mas existe algo que as três têm em comum: todas foram escritas por mulheres e contam as histórias de protagonistas cansadas, ansiosas, frustradas e deprimidas.
Na internet, obras com mulheres assim estão sendo chamadas de ‘livros de mulher maluca’ ou ‘livros de mulher doida’. Uma rápida pesquisa por esses termos na rede social revela diversos vídeos de recomendações, incluindo livros de Carla Madeira, brasileira, e Elena Ferrante, italiana
Além de abordarem personagens imperfeitas, as tramas também falam sobre relacionamentos fracassados, sexo explícito, vinganças e baixa autoestima. Mas por que esses romances ganharam esse título?
Segundo Lívia Reginato, influenciadora digital literária conhecida como Liv Resenhas, o apelido ‘livros de mulher maluca’ vem da representação de mulheres fora do padrão de feminilidade.
“São livros que pegam a essência de ser mulher e mostram a parte ruim disso. É um compilado de bênçãos, abusos, hormônios e de coisas que fazem a mulher querer gritar de dentro para fora, mas ela não pode, porque isso a torna histérica. Então, pegamos essas personagens e elas podem gritar, cometer grandes atos de violência, grandes loucuras, porque elas têm essa liberdade artística. Só que, na verdade, elas são só mulheres cansadas”, explica a influenciadora.
Um dos exemplos usados por ela foi Pessoas Normais (Companhia das Letras), de Sally Rooney, autora conhecida pelos fãs desse tipo de livro. Na história, acompanhamos a adolescência e a vida adulta de Marianne e Connell, que vivem um relacionamento conturbado marcado por diferenças sociais e problemas familiares. A protagonista está em constante sofrimento, mas não abandona seu hábito de correr atrás de quem a maltrata.
“As personagens de Sally Rooney são as personagens mais normais que eu já li”, disse Lívia em entrevista ao Estadão. “Muitas vezes, os ‘livros de mulheres malucas‘ apenas têm mulheres - com problemas, passados e experiências - respondendo da forma que elas não deveriam estar respondendo a isso. Geralmente como grandes coitadas”, completou.
Para Déborah Landsberg, que traduziu a obra para o português, Marianne é uma personagem feminina profunda. “Ela tem problemas de saúde mental assim como qualquer pessoa que cresceu no ambiente em que ela cresceu teria. Diante de tudo o que ela passou, Marianne é até bem centrada. E o Connell também tem problemas de saúde mental, mas nunca vi ninguém chamá-lo de maluco“.
A tradutora, no entanto, questiona se esses títulos chamados de ‘livros de mulher maluca’ realmente têm a ver com um problema de saúde mental da protagonista - ou se condiz com livros de autoria feminina que apresentam personagens fazendo coisas que não correspondem ao que a sociedade espera delas. “Nós nos acostumamos tanto a ler livros escritos por homens em que as mulheres são rasas, sem voz, sem desejos, que essas novas personagens femininas são tidas como malucas”, ela diz.
Ana Júlia Barros, influenciadora digital conhecida como AnaJúLivros, liga o rótulo dado a essa literatura ao machismo da sociedade, como apontado também pelas outras entrevistadas. ”Vejo mulheres espontâneas e fortes, e não conseguiria colocá-las em uma única caixinha. São mulheres que têm suas complexidades, que não têm muito pudor e não têm medo de se posicionar.”
Machismo, relacionamento abusivo e maternidade
Além de esperar que a mulher se comporte de acordo com o padrão esperado pela sociedade, também é frequente ver mães que não se adaptaram à maternidade sendo criticadas - críticas que não são feitas quando o pai é que é ausente.
Outra personagem frequentemente usada como exemplo é Daisy Jones, de Daisy Jones & The Six (Companhia das Letras). Na trama, Daisy Jones é a vocalista da banda Daisy Jones & The Six e não faz questão de se tornar mãe. No entanto, após sua aposentadoria, ela decide adotar e se torna mãe solo. ”Eu não acho que seja uma rejeição à maternidade, mas uma rejeição a esse lugar que a mulher deveria ocupar de mãe, de mulher exemplo, de que tudo na sua vida deve se encaminhar para você encontrar um marido, encontrar estabilidade para você criar seus filhos”, disse Ana Júlia.
Além de temas como saúde mental, esse tipo de obra também aborda relacionamentos abusivos e como isso pode mudar a vida dos afetados. É o caso de É Assim Que Acaba (Galera Record), que conta a história de Lily, uma jovem que se muda de cidade e conhece Ryle, com quem se envolve e entra em um relacionamento tóxico. “Existe uma vergonha e uma frustração de você estar em um relacionamento que as pessoas do seu convívio acompanham e têm os próprios julgamentos. Dá uma vergonha quando dá errado, você assumir, sair daquilo e mostrar que não deu certo”.
Nesse contexto, sobrou até para a misteriosa escritora Elena Ferrante, autora de A Filha Perdida, sobre uma mulher que, em um certo momento da vida, e por um período, deixa as filhas pequenas com o pai e vai viver sua vida. Amanda Orlando, editora do box da Tetralogia Napolitana (Biblioteca Azul, selo da Globo Livros), o maior sucesso da italiana, diz: “Só alguém muito machista se referiria aos livros da Ferrante dessa forma”.
Para ela, é natural que mulheres se identifiquem com as personagens da autora italiana porque as histórias abordam questões femininas de forma real e profunda. Além disso, Amanda destacou que as angústias e os dilemas vividos pelas protagonistas são condizentes com o período em que a narrativa é ambientada.
“Eu sou mulher e vivo no Brasil. Então, ainda que alguns aspectos e sutilezas da trama tenham me tocado profundamente, nada do que está ali me chocou”, finalizou.
Para as entrevistadas do Estadão, as mulheres chamadas de ‘malucas’, são, na verdade, personagens femininas criadas por mulheres. Justamente por isso o público-alvo dessas obras é feminino.
“A maioria das experiências femininas não são verbais, não são coletivas, são 100% interpessoais e dentro da cabeça de cada pessoa. É por isso que ler, ser uma autora mulher que escreve para mulheres é muito lindo, porque é uma forma de transformar uma experiência individual, mas que é muito quieta, e zero coletiva, em algo que talvez faça sentido para outras pessoas, de entenderem que isso não é algo quebrado, é um sentimento único e pessoal”, finaliza a influenciadora Lívia Reginato.
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*Estagiária sob supervisão de Charlise de Morais
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