O centenário da Semana de Arte Moderna, que será celebrado em fevereiro, motivou as editoras a lançarem uma enxurrada de obras sobre o evento, desde ensaios até testemunhos históricos. E o saldo positivo de tantos volumes é reafirmar a importância do trabalho de Oswald de Andrade (1890-1954), para muitos críticos o principal nome do movimento modernista. E, entre as publicações, três se destacam: o monumental Obra Incompleta (Edusp), cujas 1.656 páginas se dividem em dois tomos; Diário Confessional (Companhia das Letras), que traz justamente apontamentos ausentes naquelas obras; e o curioso O Guarda-Roupa Modernista – O Casal Tarsila e Oswald e a Moda (Companhia), elucidativa pesquisa feita por Carolina Casarin. Tal espalhamento se explica, em parte, pela forma caótica com que Oswald trabalhava. “Enquanto Mário de Andrade catalogou e guardou todo seu material em sua casa, facilitando o acesso a praticamente tudo o que escreveu, Oswald não pensava na posteridade, não tinha uma preocupação de gabinete”, observa o crítico Jorge Schwartz, um dos principais conhecedores do trabalho oswaldiano e que coordenou a edição crítica de Obra Incompleta novamente auxiliado pela pesquisadora Gênese Andrade.
Um trabalho minucioso e paciente – há muitos destaques nos dois volumes, como um texto inédito de Antonio Candido que faz uma breve, mas elucidativa, síntese da obra de Oswald, enfatizando sua personalidade. “Um texto impressionante pois, mesmo já tendo analisado vários aspectos do modernista ao longo dos anos, o professor Candido trouxe aqui um olhar original”, comenta Schwartz, que destaca ainda outra preciosidade, o texto A Retirada dos Dez Mil. Publicado em 1935, no jornal A Platea, o artigo traz uma dura crítica ao escritor Plínio Salgado que, no comando dos integralistas, flertava com o fascismo daquela época. “É um libelo sarcástico e até violento, uma crítica política rara de se ver no Brasil.” Oswald, de fato, era um dos poucos autores da sua época a apresentar um texto mais cerebral, argumentativo e não apenas preocupado em narrar uma história. A multiplicidade da obra de um dos principais incentivadores da Semana de Arte Moderna de 1922, cujo objetivo declarado era “assustar a burguesia que cochila na glória de seus lucros”, se revelava em trabalhos fundamentais como o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928), além da introdução da prosa experimental no Brasil, com Memórias Sentimentais de João Miramar (1924). Era o criador de uma poética que restaurava o arcaico para se libertar do passado. A fama de bufão, no entanto, pode esconder a dedicação de Oswald a seu trabalho, confirmada pela bibliografia organizada por K. David Jackson, que aponta 498 títulos de autoria de Oswald, entre poemas, manifestos, romances, artigos, conferências e entrevistas, publicados em português e em outras línguas. Outro destaque levantado por Schwartz é o artigo Gênese da Semana de Arte Moderna, publicado em um periódico em 1944.
Ali, além de uma avaliação positiva do movimento, Oswald revela a perda de um poema, escrito em 1911 ou 1913, que teria sido o texto pioneiro do Modernismo no Brasil. A sensação de incompletude, portanto, sempre o acompanhou, o que marca também o título de Obra Incompleta.O material para esse trabalho foi descoberto no acervo de Marília de Andrade, filha do escritor, fonte também para Diário Confessional, organizado pelo crítico Manuel da Costa Pinto. “O conjunto inclui uma gama variada de anotações esparsas, esboços de textos”, observa o jornalista, na introdução do livro. “O material permaneceu guardado todos esses anos em meio aos manuscritos do escritor – mais especificamente, em 16 cadernos pertencentes ao acervo particular de sua filha, Marília. Pode-se afirmar que é a única obra que restou ao mesmo tempo inédita e completa no conjunto de seis dos 16 cadernos.” Trata-se de uma sequência de textos com marcações de dia e mês entre 1948 e 1954. Foi um período turbulento na vida de Oswald, marcado por problemas financeiros que o obrigaram a vender bens para saldar dívidas cotidianas, como o pagamento da escola de seus filhos. “Se há uma tônica dominante no Diário Confessional, é exatamente esta: a insegurança econômica que pouco a pouco vai ocupando espaço cada vez maior no registro de um cotidiano atormentado por credores e por infrutíferas iniciativas de vender bens, conseguir empréstimos, negociar hipotecas – termo que surge ao lado de palavras recorrentes como ‘promissória’, ‘letra’, ‘título’, ‘anticrese’, ‘papagaio’, pertencentes a um jargão hoje em desuso para designar os compromissos assumidos com instituições de crédito e, sobretudo, agiotas que se aproveitavam da situação de Oswald com empréstimos a juros extorsivos, que aumentavam seu endividamento”, escreve Costa Pinto. E, como acontece em Obra Incompleta, aqui também um dos destaques são suas observações sobre a Semana de 1922. São anotações e insights que funcionariam como um rascunho de um provável texto futuro. “O tom ácido das anotações oswaldianas sobre os protagonistas (ou algozes) do movimento é característico de um caderno íntimo e talvez fosse amenizado numa eventual versão publicada pelo próprio autor”, acredita o crítico. Oswald é impiedoso com colegas como Manuel Bandeira e, principalmente, Mário de Andrade, com quem manteve uma relação de amor e desprezo. “Eles se somam”, observa Jorge Schwartz. “São duas personalidades e literaturas diferentes, mas que se completam.
Para a elaboração de seu doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a pesquisadora Carolina Casarin escolheu um tema instigante: como a indumentária de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade era fruto de sua apropriação da moda, uma das formas que o casal escolhia para deixar uma marca. O resultado está no livro O Guarda-Roupa Modernista, lançado agora pela Companhia das Letras. Carolina compara a aparência e o vestuário desses artistas com o projeto estético e ideológico do modernismo brasileiro, especialmente no trabalho de elaboração de uma identidade nacional. É bom lembrar que Tarsila e Oswald, que foram casados, eram de famílias ricas da burguesia paulista, o que possibilitava inúmeras viagens na década de 1920 à França, onde mantinham relações especialmente com a maison Paul Poiret – foi ele quem fez, por exemplo, seu vestido de noiva no casamento com Oswald, a partir do traje de casamento de sua mãe. “Tarsila e Oswald tiveram uma elegância ousada – ou uma ousadia elegante, modo de dizer que melhor revela que o casal dominava os códigos dos grupos que frequentava – e buscavam originalidade, recorrendo a um costureiro cujo estilo estava associado à ideia de ‘exótico’”, escreve Carolina, no livro. Segundo ela, o apreço de Tarsila e Oswald pelos figurinos de Poiret revela gosto por uma silhueta volumosa e roupas ornamentadas, denotando um luxo exuberante – mesmo que Poiret fosse considerado antiquado em seu país. Enquanto Tarsila esmerava-se em trajes elegantes, Oswald muitas vezes foi fotografado usando roupa esportiva o que, segundo Carolina Casarin, é fundamental para se compreender a gradativa modernização e a consequente informalização que ocorre no vestuário masculino durante a primeira metade do século 20. O casal, assim como Mário de Andrade, investiu na elaboração de suas aparências “como um modo de expressão estética e artística que fosse incluído no projeto ideológico de brasilidade modernista”.
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