Tristão de Athayde e as muitas viagens que inspiraram sua trajetória intelectual

'Jornada Tristão de Athayde – Seminário Alceu Amoroso Lima' debate a importância da peregrinação para a formação do escritor

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Por Xikito Affonso Ferreira

1914, Paris. As forças nazistas marchavam a poucos quilômetros da fronteira com França. Diante do risco de invasão, Alceu Amoroso Lima, então um jovem estudante encantado pela Belle Époque, vê-se obrigado a interromper uma viagem de férias com os pais e irmãs e voltar às pressas para o Brasil. A família consegue bilhetes para embarcar de trem para Lisboa e, em seguida, parte de navio rumo à América do Sul. Todos chegam ao Rio de Janeiro a salvo, mas as memórias deste contato tão próximo com a invasão da capital francesa deixaram marcas no jovem intelectual, que só retornaria à Cidade Luz 36 anos depois. 

O escritor, crítico literário e teólogo Alceu Amoroso Lima Foto: Acervo Estadão

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As estadas em Paris fizeram parte da rotina de Tristão de Athayde durante um longo período. Na infância, era guiado pelas mãos do padrinho, o empresário Antônio Marinhas, para flanar pelos bulevares e comprar brinquedos em lojas requintadas. Entre 1900 e 1914, Alceu passou pelo menos três temporadas na França antes da eclosão da primeira guerra. Numa das ocasiões, foi aluno, junto com os filósofos Jacques Maritain e Ettiene Gilson, de um curso livre de filosofia ministrado pelo também filósofo e professor francês Henri Bergson. O afastamento daquela realidade de efervescência cultural, ocasionado pelas duas guerras, teve impacto em seu olhar e o fizeram debruçar-se sobre a nova realidade europeia que surgia.  A comparação entre as duas Europas e duas das longas estadas em Paris, a de 1914 e a de 1950, serviu de fio condutor para que ele refletisse sobre o papel de dois diplomatas, escritores e pensadores brasileiros que também viveram no velho continente. As primeiras linhas foram escritas ainda no balançar do navio quando a família (ele, a mulher e os filhos) deslocavam-se para uma série de passeios por Portugal, França e Itália. O resultado desta associação de ideias foi o livro “Europa de Hoje”, publicado em 1951, em que o jornalista analisa que o abolicionista e escritor recifense Joaquim Nabuco sorveu muitas de suas ideias de liberdade do contato com outros intelectuais, durante os três anos em que morou na Inglaterra. Nabuco simbolizaria, então, o modelo de Brasil que importa a cultura europeia. Já o mineiro Afonso Arinos, por sua vez, teria atuado mais como um exportador da cultura brasileira, cativando intelectuais europeus com suas histórias da gente do interior do Brasil, narradas com uma singularidade peculiar e contagiante. Arinos era um sertanista, que teve influência sobre escritores como Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Arinos aos domingos almoçava na Rua do Cosme Velho, na casa onde Alceu cresceu; a estreia literária de Alceu foi a biografia de Arinos.  Como “Europa de Hoje”, muitos outros títulos de livros de Tristão de Athayde têm nome ou fazem referência a continentes, países, estados, cidades ou a viagens: “Mensagem de Roma”, de 1950. “Manhãs de São Lourenço”, de 1950. “Voz de Minas”, de 1945, e “Companheiros de Viagem”, de 1971, são exemplos.  Muitas foram viagens que inspiraram sua trajetória intelectual. Alguns textos nasceram de sua própria experiência durante os passeios, como o que relatou uma visita realizada na década de 1950 à pequena cidade de Saint Maximin, no Sul da França. Encantado pelas histórias da Basílica de Santa Maria Madalena, na época ele decidiu aproveitar uma estadia a trabalho em Paris para conhecer a igreja onde estão os restos mortais da santa, e o antigo centro de estudos e pesquisa dos dominicanos franceses.  Na volta, o advogado contou a experiência num livro de memórias e em artigos publicados na imprensa carioca, mas os detalhes sobre a logística da peregrinação só foram descobertos recentemente, quando o professor Leandro Garcia, investigando arquivos históricos do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAAL), em Petrópolis, encontrou duas cartas inéditas trocadas entre Alceu Lima e o então seminarista Lucas Moreira Neves, que havia acabado de ingressar na ordem dominicana. Os documentos, que integram o acervo de mais de 30 mil cartas do CAAL, trazem o simbolismo de ajudar a contar a história da relação entre Alceu e a ordem dominicana. E mostram um Dom Lucas Neves que poucos conheceram. Tal rico acervo pode ser gratuitamente pesquisado em http://www.alceuamorosolima.com.br/. Cópias das duas missivas serão apresentadas num evento virtual que será realizado no próximo dia 11, 19h, com transmissão pelo Youtube. A obra de Alceu Amoroso Lima, por sinal, oferece várias leituras e associações que podem guiar os leitores pelos mais diversos caminhos de estudo da história do Brasil e do mundo.  Diante de tantas histórias reveladoras, a equipe de pesquisadores do acervo de Tristão de Athayde optou por usar o tema viagens como ponto focal da quinta edição da “Jornada Tristão de Athayde – Seminário Alceu Amoroso Lima”, que vai ocorrer em formato digital por causa das restrições impostas pelo Coronavírus. Num cenário de pandemia, as histórias de Tristão de Athayde prometem ser mais uma janela para escape do isolamento social.

Xikito Affonso Ferreira é neto de Alceu Amoroso Lima e autor da biografia “Histórias de meu avô Tristão — A biografia de Alceu Amoroso Lima”

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