O francês Marcel Proust (1871-1922), o irlandês James Joyce (1882-1941) e o checo Franz Kafka (1883-1924) foram indiscutivelmente os maiores romancistas do século 20. Morreram jovens, respectivamente aos 51, 58 e 40 anos. Proust – filho de um médico francês, cuja mãe, Jeanne Weill, tinha origem judaica – notabilizou-se com a saga Em Busca do Tempo Perdido, uma das mais brilhantes investigações sobre os mecanismos da memória afetiva. Joyce evoluiu das primeiras obras em estilo realista para dois impressionantes monumentos da técnica narrativa: Ulysses, com seu complexo arcabouço estrutural, e Finnegans Wake, magistral desconstrução da linguagem ficcional. E Kafka, judeu-checo que escrevia em alemão (era súdito do Império Austro-Húngaro), com suas fábulas e parábolas sombrias, cortou fundo a fachada social para expor o absurdo do mundo.
Gosto de elaborar encontros hipotéticos entre os três. Tecnicamente – pelo menos dois a dois –, Proust, Joyce e Kafka poderiam ter cruzado caminhos. As hipóteses viajam da Trieste austro-húngara de 1908 à Paris da belle époque em 1910 e à Paris dos “années folles” de 1922. Em outubro de 1910, aos 27 anos, Kafka passou poucos dias em Paris, com os irmãos Max e Otto Brod. Fez o que todo visitante faz: caminhou pela cidade. Mas suas flâneries foram bruscamente interrompidas por uma violenta crise de furunculose. Além do mais, Proust preferia se deslocar de coche, sem se acotovelar com a patuleia. Kafka, funcionário burocrata do ramo de seguros, ainda não se revelara escritor, enquanto Proust juntava dinheiro para publicar, do próprio bolso, o primeiro volume de À la Recherche du Temps Perdu, em 1913.
Entre novembro de 1907 e julho de 1908, Kafka foi empregado da companhia de seguros Assicurazione Generali, de Trieste. Teria visitado pelo menos uma vez a cidade, onde James Joyce morou de 1905 até o começo da Primeira Guerra, em 1914. Mas um encontro entre Kafka e Joyce ali não passaria de uma fortuita proximidade anônima na rua ou num café – existem menções de que Kafka adorava o Caffé degli Specchi – o Café dos Espelhos, frequentado por Joyce. Depois de morar em Zurique durante a Primeira Guerra, Joyce mudou-se com a família para Paris, a partir de julho de 1920. Não só um encontro com Proust era tecnicamente viável, como ocorreu e fez história. Proust e Joyce no Hotel Majestic: um encontro desastroso. Apoiei-me em informações selecionadas dos livros Uma Noite no Majestic e Um por Um – 101 Encontros Extraordinários, respectivamente dos ingleses Richard Davenport-Hines e Craig Brown, lançados no Brasil em 2006 e 2014.
O casal de mecenas ingleses Sydney e Violet Schiff, a pretexto de homenagear os Ballets Russes de Sergei Diaghilev, marcou um jantar numa sala privada do Hotel Majestic de Paris, em 19 de maio de 1922. Na verdade, era uma artimanha para reunir “os maiores artistas vivos do mundo”: Igor Stravinski, Pablo Picasso, James Joyce e Marcel Proust.
Joyce acabara de ter o romance Ulysses publicado na data dos seus 40 anos, 2 de fevereiro; Proust tinha lançado, havia apenas duas semanas, Sodoma e Gomorra, coqueluche das discussões literárias na cidade. Picasso e Stravinski foram pontuais. Joyce chegou depois do café, bêbado e desalinhado. Proust, convidado para um café depois do jantar – os Schiff queriam poupar sua saúde, ele só teria mais oito meses de vida –, apareceu elegante, todo de preto, com luvas de pelica. Apresentados, Joyce e Proust deram as mãos, o francês com um “aperto molenga”, na birra do irlandês. Considerados rivais literários, começaram trocando farpas (segundo a duquesa de Clermont-Tonnerre): “Nunca li seus livros, monsieur Joyce”. “Nunca li seus livros, monsieur Proust.” Joyce confidenciou a um amigo anos depois: “Proust só escrevia sobre duquesas, eu só me interessava por suas camareiras”. E a outro amigo: “Nossa conversa consistiu unicamente da palavra não. Proust me perguntou se eu conhecia o duque Fulano de Tal. Eu disse não. Nossa anfitriã perguntou se Proust tinha lido essa ou aquela passagem de Ulysses. Proust disse não. E assim por diante. Era claramente uma situação impossível. O dia de Proust estava apenas começando. O meu já tinha quase acabado”.
Anotou o poeta americano William Carlos Williams, que também era médico: “Joyce: ‘Tive dor de cabeça o dia inteiro. Meus olhos estão terríveis’. Proust: ‘Ai, como dói meu estômago. Está me matando. Preciso partir imediatamente’. Joyce: ‘Estou na mesma situação. Alguém pode me dar o braço?’. A partir de então, durante horas, os dois discutem suas várias doenças. A noite termina com Proust convidando os Schiff para o seu apartamento e Joyce se esgueirando no táxi também. O irlandês começa a fumar e abre a janela, causando um chilique em Proust, um asmático que detesta o ar fresco. Na breve corrida, Proust fala sem parar, mas não se dirige a Joyce. Quando os quatro descem a Rua Hamelin, Joyce tenta juntar-se ao grupo, mas Proust faz de tudo para se livrar dele: ‘Deixe meu táxi levá-lo para casa!’, insiste, e desaparece com Violet Schiff, delegando a Sydney a missão de enfiar Joyce no táxi. Finalmente livres da companhia de Joyce, Proust e os Schiff bebem champanhe e conversam alegremente até o dia raiar”.
Estas e outras especulações sobre a vida pessoal dos três escritores vêm rolando por algum tempo, do centenário do lançamento de Ulysses (fevereiro de 2022), ao centenário da morte de Proust (novembro do ano passado), passando pelos 140 anos de nascimento de Kafka em julho de 2023, e pelo centenário da sua morte em 2024; pelos 110 anos de Em Busca do Tempo Perdido, e ainda – haja comemoração! – pelos 120 anos do Bloomsday, em 16 de junho de 2024.
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