‘Uma História (Muito) Curta da Vida na Terra’: Leia trecho inédito de livro do editor da ‘Nature’

Nova obra do paleontólogo, biólogo e escritor britânico Henry Gee percorre 4,6 bilhões de anos de evolução da vida em 12 capítulos para chegar a um grande questionamento: qual é o legado humano na Terra?

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Foto do author Julia Queiroz
Atualização:

Qual é o futuro da espécie humana na Terra? E qual será o legado que deixaremos? Essas são algumas das perguntas que o paleontólogo, biólogo e escritor britânico Henry Gee, há 30 anos editor da revista científica Nature, responde no livro Uma História (Muito) Curta da Vida na Terra. A obra chega ao Brasil em junho pela editora Fósforo, com tradução de Gilberto Stam.

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Gee, com décadas de experiência e autoridade em biologia evolutiva e à frente de uma das mais prestigiadas publicações acadêmicas do mundo, parte do princípio de que é preciso olhar o passado para entender o presente e, então, pensar o futuro. Não é possível compreender o atual estado do planeta e da sociedade sem passar por anos - 4,6 bilhões deles, para ser exato - de vida na Terra.

Em apenas 12 capítulos (além de linhas do tempo, epílogo, sugestões de leitura, notas e um índice remissivo), o autor percorre essa evolução, passando pelos primeiros seres vivos, o surgimento da coluna vertebral, o período jurássico e a extinção dos dinossauros, o aparecimento dos mamíferos e, eventualmente, dos humanos e do mundo moderno.

Cataratas do Iguaçu, na fronteira entre Brasil e Argentina.  Foto: Crudiernst - stock.adobe.com

Em diversos momentos da obra, Gee também exemplifica como as mudanças evolutivas estão diretamente relacionadas com a construção da sociedade. Em trecho publicado pelo Estadão, retirado do capítulo O fim da Pré-História, ele explica como a menopausa foi uma inovação evolutiva que resultou na maior longevidade da espécie humana e na criação de um novo grupo da sociedade hominídea: os idosos.

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Leia trecho de ‘Uma História (Muito) Curta da Vida na Terra’:

Por volta de 700 mil anos atrás, os episódios glaciais foram muito mais longos que os intervalos quentes que os separaram. A Terra estava agora em um estado mais ou menos permanente de glaciação. As pausas eram quentes, inebriantes e breves.

A vida não só sobreviveu, ela prosperou. Regiões da Eurásia não oprimidas pelo gelo estavam cobertas de estepe verde, que suportava uma tonelagem quase incalculável de caça. Na primavera e no verão, bisões migravam pela terra em rebanhos tão grandes que levaria dias para vê-los passar aos milhões. Eram acompanhados por cavalos e veados gigantes com chifres incrivelmente extensos; vez ou outra a eles se juntavam espécies de elefantes, como mamutes e mastodontes; o resfolegar e a pisada dos rinocerontes lanosos também iam junto. Os invernos eram só um pouco menos cheios. Muitos animais migravam para o sul, mas as renas permaneciam na neve. Toda essa carne em movimento era um ímã para carnívoros como leões, ursos, felinos-dente-de-sabre, hienas, lobos — e os duros e resistentes herdeiros do Homo erectus.

Os hominíneos responderam à intensificação da era do gelo com cérebros e reservas de gordura maiores.

Isso foi, por si só, notável. Como observamos, cérebros são órgãos que custam caro para funcionar. A economia da natureza geralmente exige que um animal inteligente tenha apenas um mínimo de gordura, porque, se a comida acabar, ele será astuto para encontrar mais em outro lugar antes de morrer de fome. São apenas os menos iluminados entre os mamíferos que precisam acumular gordura. Os humanos, porém, são exceção. Os humanos mais magros armazenam uma quantidade superior de gordura que a dos macacos mais gordos. Animais com cérebros grandes que têm uma boa camada de isolamento têm tudo de que precisam para lidar com o frio interminável da era do gelo.

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A gordura tinha outro propósito também. A diferença entre os sexos é em grande parte uma questão de acúmulo dela. O corpo de um homem adulto contém, em média, cerca de 16% do peso em gordura; o de uma mulher, 23%. Essa diferença é significativa, uma vez que energia embutida é um pré-requisito essencial para a fertilidade e a gravidez, principalmente em tempos de escassez. Como tal, os mecanismos de seleção favoreceram as fêmeas roliças com curvas arredondadas, por terem as melhores perspectivas de reprodução.

Cérebros grandes, no entanto, também podem apresentar problemas, uma vez que levam a cabeças grandes. Bebês humanos, com suas cabeçorras, têm dificuldade para nascer. Os bebês só nascem graças a uma torção de noventa graus da cabeça durante a passagem pela pélvis da mãe e a emersão pela vagina. Até muito recentemente, o custo disso era suportado pela mãe, que corria um alto risco de morrer no processo. Os bebês humanos vêm ao mundo em um estado relativamente desamparado. Se esperassem até estar mais desenvolvidos e talvez mais capazes de lidar com o mundo, poderiam ser grandes demais para passar pelo canal do parto, e sequer nasceriam. Assim os nove meses de gravidez representam um período de trégua desconfortável entre o bebê, que precisa ser capaz de lidar sozinho com o mundo exterior o mais rápido possível, e a mãe, que, se esperasse mais, teria de jogar dados cada vez mais viciados com a morte.

É um meio-termo que não agrada a ninguém. Uma espécie em que os bebês nascem totalmente indefesos e, mesmo se nascerem com sucesso — de mães que correm alto risco de morte —, levam muitos anos para atingir a maturidade, provavelmente vai se extinguir muito depressa. A solução para isso, portanto, foi uma mudança dramática, mas no outro extremo da vida: a menopausa.

A menopausa é outra inovação evolutiva exclusiva dos humanos. Em geral, qualquer criatura, mamífero ou não, que seja velha demais para se reproduzir envelhece e morre na sequência. Em humanos, porém, as fêmeas que deixaram de se reproduzir na meia-idade podem desfrutar de muitas décadas de vida útil — e, portanto, criar mais filhos.

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O aumento do cérebro e o consequente desamparo dos bebês foi acompanhado pelo surgimento das avós: mulheres na pós-menopausa que estariam ali para ajudar as filhas a criar os netos. A lógica da seleção natural não diz nada sobre quem realmente cria os filhos até a maturidade — contanto que sejam criados por alguém. Ocorre que uma mulher que deixa de se reproduzir para ajudar as filhas a criar os netos gerará, em média, um número maior de descendentes do que se ela mesma permanecesse reprodutiva, competindo por recursos com suas filhas.

Com o tempo, os grupos de humanos que contavam com mulheres na pós-menopausa para ajudar a criar os filhos levariam mais dessas crianças à idade reprodutiva. Aqueles que foram incapazes de explorar um recurso tão valioso quanto esse morreram. O meio-termo desconfortável foi superado pela cooperação.

O ato de se reproduzir tira energia de todo o resto. Há uma compensação entre reprodução e longevidade. Assim, ao cessar a reprodução na meia-idade, as fêmeas humanas aumentaram seu resultado reprodutivo e passaram a viver mais. Isto é, o aumento do cérebro levou a um aumento da expectativa de vida, talvez dos vinte e poucos anos, no Homo erectus, aos quarenta e poucos, nos neandertais e nos humanos modernos.

Embora as pressões da evolução agissem de forma diferente em machos e fêmeas, eles compartilhavam os mesmos genes, o que levou a uma guerra entre os sexos. A pressão era exercida por forças que selecionavam de dois modos divergentes: um gene, dois mestres. O resultado foi outro meio-termo. Como as fêmeas precisavam ser mais gordas para trazer bebês ao mundo, os machos também engordavam, mas não tanto. Se as fêmeas desenvolveram a menopausa e passaram a viver mais, os machos passaram a viver mais também, mas não tanto. Isso levou à introdução de um novo estrato na sociedade hominínea: os idosos, de ambos os sexos. Antes da invenção da escrita, os idosos passaram a ser valorizados como repositórios de conhecimento, sabedoria, história e narrativas populares.

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Pela primeira vez na evolução, existiam espécies nas quais o conhecimento podia ser transmitido para mais de uma geração ao mesmo tempo. Os filhotes de muitos animais — como baleias, aves, cachorros, seres humanos — são capazes de aprender com outros de sua espécie, adquirindo os recursos de linguagem pela imitação inconsciente dos adultos ao seu redor. Os humanos são únicos, até onde se sabe, porque não apenas aprendem, mas também ensinam. Os idosos tornaram isso possível. Enquanto os membros mais jovens da tribo amamentavam bebês ou caçavam, os idosos, menos produtivos, passavam seus estoques de conhecimento para as novas gerações de crianças que, com sua longa infância (em função da relativa imaturidade ao nascer), tinham bastante tempo para adquiri-los. A informação abstrata tornou-se uma moeda de sobrevivência tão importante quanto as calorias. As consequências seriam explosivas. E tudo começou durante a era do gelo, quando, pela primeira vez, armazenar gordura e ter um cérebro maior se tornou uma vantagem para os primatas.

Uma História (Muito) Curta da Vida na Terra

  • Autor: Henry Gee
  • Tradução: Gilberto Stam
  • Capa e ilustração: Carol Grespan e Daniel Bueno
  • Editora: Fósforo, 280 págs.; R$89,90 | E-book: R$62,90
  • Lançamento: 17/06/2024
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