A Amazon divulgou, na noite desta segunda-feira, 26, em cerimônia realizada no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que o livro A voz que ninguém escutou, de Renan Silva, é o grande vencedor do Prêmio Kindle de Literatura. Leia abaixo um trecho da obra.
Ao Estadão, Renan contou que o projeto do romance existe há mais de uma década e ficou engavetado por anos antes de ser retomado. O escritor afirmou que quer usar da literatura como “um lugar de transformação social”.
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A premiação, que está em sua 8ª edição, reconhece romances inéditos publicados de forma independente por meio do Kindle Direct Publishing e recompensa o ganhador com R$ 50 mil - R$ 40 mil em dinheiro e R$ 10 mil como adiantamento de direitos autorais para publicação do livro em parceria com o Grupo Editorial Record.
O romance também será distribuído aos assinantes da TAG Experiências Literárias. Pela primeira vez, todos os finalistas terão seus livros gravados e publicados em formato de audiolivro pela Audible, a plataforma de audiolivros da Amazon, que chegou ao Brasil em 2023.
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A voz que ninguém escutou foi escolhido por um júri especializado composto pelos escritores Eliane Potiguara (Metade cara, metade máscara), Eliana Alves Cruz (Solitária) e Marcelino Freire (Contos negreiros). Veja os finalistas:
- A voz que ninguém escutou, de Renan Silva - VENCEDOR
- As grandes navegações, de Gael Rodrigues
- Frio, de Tiago Magalhães Ribeiro
- Utopia, Pandemia, Cabeça de Boi, de Alex R.F
- Todos os caminhos me levam ao mar, de Renata Pereira
Em outras edições, os títulos premiados foram A filha primitiva (leia a resenha), de Vanessa Passos, O Pássaro Secreto, de Marília Arnaud, Dias Vazios, de Barbara Nonato, Dama de Paus, de Eliana Cardoso, O Memorial do Desterro, de Mauro Maciel e Machamba, de Gisele Mirabai.
Sobre o que é A voz que ninguém escutou?
Publicado em 13 de junho de 2023 em formato e-book, A voz que ninguém escutou é o romance de estreia de Renan Silva. O escritor tem 37 anos, é natural do Rio de Janeiro e também é professor, roteirista, poeta e pós-graduado em Escrita Criativa.
A voz do título é a de vários personagens cujas vidas se entrelaçam na trama. Maria, que muda para a capital com os dois filhos para tentar escapar da miséria e da violência. Inácio, garoto em situação de escravidão em uma fazenda que busca uma família. Inês, filha de uma empregada doméstica que dorme nos fundos da mansão de um banqueiro rico. Vânia, jornalista que acabou de perder a mãe e tenta reconstruir a vida.
Por ser historiador, Renan conseguiu abordar eventos importantes da história brasileira na trama, como a construção de Brasília, a chegada da televisão ao País e as décadas de ditadura militar. A história também discute temas como violência doméstica, sexualidade e problemas de saúde mental - algo com que o próprio Renan sofria quando começou a escrever a história.
“São temáticas da ordem do dia. Todos os personagens estão passando por situações que são do contemporâneo. É uma história do passado, mas que fala do presente também, do que a gente está vivendo hoje. Essa é a minha ideia: a partir de histórias do passado falar de como a gente é hoje e porque chegamos até aqui”, explicou o autor à reportagem.
O e-book está à venda por R$ 12,90 e também está disponível para assinantes do Kindle Unlimited.
Ao Estadão, Ricardo Perez, líder do negócio de livros da Amazon Brasil, disse que a vitória do romance “reafirma a força dos jovens autores brasileiros” e afirmou “é um privilégio ver de perto que [o] primeiro romance publicado [por Renan] já foi premiado“.
“O Prêmio Kindle de Literatura é um grande motivo de orgulho para a Amazon Brasil e, na sua oitava edição, é também a prova de que somos um país com muitos autores independentes super talentosos que merecem ser incentivados e celebrados”, completou.
Leia o prólogo de A voz que ninguém escutou:
2005
Giroflex rodopiando como carrossel. Sons de sirene e o eco interminável.
O branco predomina.
Era a ambulância que carregava Inês.
Junto a ela, sua filha, Vânia, sentia um leve desespero por ver sua mãe ali, acamada.
A queda foi seca no jardim do prédio situado na rua Dias da Rocha, em Copacabana. Era uma construção da década de 1960, mas que dispunha de um pequeno jardim na sua entrada.
A suspeita de que a colisão com o chão tenha causado uma lesão grave na medula apavorava Vânia e causava uma preocupação justificada. A mesma dos paramédicos que prestaram os primeiros socorros, ainda no chão do prédio. Por isso, a presença do colar cervical que praticamente impossibilitava que se visse o rosto de Inês, seus cabelos levemente grisalhos e lisos na altura dos ombros e seus olhos castanho-claros.
Apesar de ser uma noite relativamente comum do inverno carioca, o barulho era intenso, pois neste bairro pouco se diferencia a noite do dia. Bares, restaurantes e vendedores ambulantes se misturam aos transeuntes. O trânsito era normal para o horário, o que não adiou a chegada de Inês ao hospital mais próximo, o Miguel Couto.
Os socorristas foram calmos e solícitos, aparentando o sangue frio típico da profissão, o que deve ser ensinado nos cursos de medicina.
No meio de tudo, Vânia conseguiu refletir um pouco sobre o grande mistério que norteia sua vida desde quando se entendeu por gente, por volta dos seis anos, em 1978: o passado de sua mãe. Sabia pouco, todas as vezes em que tocou no assunto, Inês se negava veementemente a tocar no assunto. Rapidamente, veio a sua mente que as duas coisas poderiam estar conectadas.
A curiosidade sobre o passado de sua mãe fazia sentido. Vânia era jornalista e isso diz muita coisa. Vânia voltara para casa após o fim de seu casamento, dois anos antes. Levou a tiracolo o filho Daniel, na época com seis anos.
Ainda na ambulância e já na entrada do Miguel Couto, Vânia balbuciou para sua mãe, mesmo sabendo que dificilmente ela escutaria:
— Vai ficar tudo bem.
Uma vez no hospital, foram feitos os trâmites de praxe, como preenchimento de fichas, triagem, etc. Simultaneamente, Inês foi levada para os cuidados do médico Marcelo Castro, especializado em lesões na coluna, que estava de plantão.
O transporte da ambulância para a sala de triagem ocorreu de forma tranquila para os integrantes da equipe médica, acostumados a fazerem este procedimento. Para Vânia, foi uma cena perturbadora ver a mãe naquela situação.
Tudo é uma questão de ponto de vista.
Enquanto Vânia aguardava as primeiras notícias da equipe médica, Carlos, seu pai, chegou. Ele estava ofegante e, após algum tempo, conseguiu dizer as seguintes palavras:
— Como ela está?
Vânia parou por alguns segundos, olhou de relance para o chão, refletindo sobre dar uma resposta muito óbvia para uma pergunta óbvia e foi lacônica:
— Ninguém soube me informar mais detalhes.
Ele fingiu ficar satisfeito com a resposta e os três se uniram em um abraço. O pequeno Daniel já tomava consciência do que estava acontecendo. Neste momento a emoção veio à tona quando a primeira lágrima saiu de Vânia e lentamente tocou o chão frio e branco do hospital. Ao ver isso, Carlos a separou do trio dando uns dois passos para o lado, abraçou-a mais forte e sussurrou no seu ouvido:
— Foi um acidente.
Vânia retribuiu o abraço, apertando-o forte. Uma segunda lágrima caiu.
O branco ainda predominava e a família aguardava notícias. A cada cinco minutos Vânia ou Carlos iam ao balcão em busca de informações. Daniel, por sua vez, estava na expectativa de logo ir para casa. No seu caso, o cansaço venceu a ansiedade e cochilou na recepção. A todo momento havia o vaivém de macas, pacientes, familiares e médicos e nada de notícias de Inês.
Subitamente, as portas que separam a recepção das outras dependências do hospital se abriram e de lá saiu, tal como um super-herói com capa branca, Marcelo Castro. Ele tinha uma feição séria, lábios cerrados, sobrancelhas pretas e grossas. Aparentava um misto de experiência e juventude. Seus cabelos também eram negros e levemente cacheados para o alto. Com a tranquilidade típica dos médicos, se aproximou de Carlos e Vânia dizendo:
— As notícias não são boas… — O olhar resignado da família foi simultâneo e latente, inclusive o menino Daniel que acordou e ainda sonolento ouvia a triste notícia. — Dona Inês teve uma lesão grave na medula, ela vai ficar em estado vegetativo.
Os olhos de Carlos ficaram marejados. Daniel abraçou as pernas da mãe com a maior força possível.
— Ela vai ficar assim pra sempre? Então quer dizer que ela não vai andar e nem falar mais? — indagou Vânia ao médico.
— Muito provavelmente. Esse tipo de lesão costuma ser irreversível.
O baque da informação foi tão forte que Vânia teve que se sentar. Carlos e Daniel imitaram a ação dela e a abraçaram novamente, desta vez por cima dos ombros. Marcelo ainda ficou parado por um tempo em frente aos três. Poucos segundos depois, Vânia se dirigiu ao médico:
— Podemos vê-la?
— Claro — respondeu prontamente.
E assim se encaminharam pelo emaranhado de corredores e salas típicas de um hospital moderno. A claridade saltava aos olhos, mesmo sendo onze e meia da noite. Ao chegarem próximos do quarto trezentos e três, viram Inês deitada e desacordada, com diversos aparelhos em volta dela parecendo uma cabine de avião. De um desses equipamentos saía um tubo que ia diretamente para as narinas da agora paciente.
Marcelo se aproximou da porta verde, a abriu, fez um movimento típico de quem quer que alguém entre em um local, estendendo os braços perpendicularmente ao corpo, o braço direito mais estendido que o esquerdo e simplesmente disse:
— Por favor.
Não foi uma entrada triunfal, muito pelo contrário. O quarto não era muito grande, porém somente Inês estava nele. Carlos, Vânia e a criança caminharam até a maca e ficaram somente observando. Marcelo os acompanhou para tirar dúvidas sobre o estado de saúde de Inês. Como houve demora para pai e filha se manifestarem, o médico tomou a palavra:
— Esta noite ela permanece sedada e em observação.
Carlos e Vânia tiraram os olhos de Inês, giraram o pescoço e observaram o médico com um olhar de quem aceita a situação. Carlos rapidamente se prontificou a passar a noite junto com a esposa. Vânia tentou argumentar, afirmando que ele poderia estar cansado pela carga de trabalho do dia, entretanto não tinha forças para insistir e acatou a decisão do pai.
Ao sair, visualizou calmamente o casal que lhe ensinou as regras da vida, proveu alimento, diversão, educação formal e informal, pensando no sofrimento que iriam passar dali por diante. Sua breve digressão na porta do quarto foi interrompida por Marcelo, que a apressou por ser quase meia-noite e somente um acompanhante poderia ficar no quarto a partir daquele horário. Disse secamente:
— Vamos, senhora.
Vânia e o filho logo foram embora, já estavam cansados de ficar naquele local. Se encaminharam para a rua e ela pediu um táxi, que não demorou para chegar.
O caminho foi mais longo que o normal, poucas palavras foram ditas durante o breve percurso. O taxista tinha uma cara carrancuda e Vânia agradeceu por isso, pois ele dificilmente começaria uma conversa. O motorista simplesmente fez seu trabalho, que custou vinte e três reais e quinze centavos. Vânia deu vinte e cinco reais e não quis saber do troco. Agradeceu, saiu do carro e entrou no prédio. Apenas o porteiro Edmilson estava acordado. Perguntou sobre o estado de saúde de Inês para Vânia, que por sua vez foi breve em dizer que não estava bem.
As luzes das casas estavam em sua maioria apagadas e o silêncio era quase sepulcral. Entrar no apartamento 506 seria algo duro de se fazer, pois foi a partir dali que tudo aconteceu. Aliás, viver naquela casa seria um problema, pensando por esse lado. Porém, se mudar estava fora de cogitação no momento. E esse nem era o principal a se pensar no momento.
Tudo que Vânia queria era descansar um pouco, o dia seguinte seria longo e imprevisível. Todavia, antes, colocou o sonolento filho na cama. Caminhou pela casa escura, já eram quase duas da madrugada, foi à cozinha beber um copo d’água, sentou-se e refletiu sobre o dia e a própria vida como um todo. Concluiu: o passado de sua mãe era repleto de lacunas que ela se recusava a preencher. Por qual razão fazia isso? Por que falava pouco sobre? Tais questões angustiavam a jornalista.
E foi mais além em seus pensamentos: a mãe tetraplégica e muda dificilmente a impediria de fazer isso agora. Entretanto, o paradoxo veio à tona: poderia se sentir uma oportunista, aproveitando da situação de sua progenitora. Durante aproximadamente cinco minutos confabulou consigo e resolveu agir.
Foi até o quarto da mãe silenciosamente para não acordar o filho. Ao entrar, viu a janela ainda aberta por onde, pouco menos de quatro horas antes, a mãe tinha passado e caído no jardim. O leve vento mexia a cortina de forma quase torturante. Ato contínuo, Vânia fechou a janela. Sentou-se na cama de colchas amarelas e abriu o armário à sua frente para iniciar sua pesquisa.
Pegou a primeira pasta com documentos. Estava envelhecida e era de couro marrom. Hesitou por um instante, pensou em guardar, afinal estava invadindo a intimidade de sua própria mãe. Deixou a ética familiar de lado e começou a utilizar as técnicas que aprendeu na faculdade. Encontrou um caderno e, quando o abriu, caíram dois papéis dobrados. Estavam amarelados pela ação do tempo. As dobras formavam vincos permanentes. Pegou uma delas, desdobrou com cuidado e viu que tratava-se da certidão de nascimento de Inês. Ali, encontrou a primeira informação relevante: a data de nascimento de sua mãe. Vinte e três de junho de 1945, na cidade de Jaguaribe, no Ceará.
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