Um parecer do Ministério da Educação (MEC) considera que o livro O Avesso da Pele (Companhia das Letras) não faz “apologia ao uso de drogas, à violência contra a mulher, ao uso de expressões vulgares e sexuais” e que as cenas narradas têm “coerência interna.”
Na ocasião, a editora Companhia das Letras entrou com uma ação nas justiças estaduais contra o que chamou de censura. Isso resultou, um mês depois, em ordens judiciais para devolver os livros às salas e bibliotecas.
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As obras usadas em salas de aula pelo País, como O Avesso da Pele, são submetidas a uma banca avaliadora independente no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), vinculado ao Ministério da Educação, antes de serem submetidas à avaliação dos professores e diretores das escolas públicas.
Os avaliadores julgam parâmetros como qualidade do texto, funções pedagógicas e “princípios éticos necessários à construção da cidadania e convívio social.”
Só após a escolha deles, entre todas as obras selecionadas pelo edital, é que os exemplares são distribuídos para as escolas.
De acordo com o parecer do MEC, feita em resposta à retirada dos exemplares das escolas daqueles estados, os trechos de O Avesso fazem “parte da lógica da narrativa, trazendo uma coerência interna para o narrado. Há uma coerência narrativa que procura revelar as tensões sobre a vida e suas reflexões.”
O Estadão teve acesso ao documento via Lei de Acesso à Informação (LAI), em atendimento a um pedido na plataforma Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada em transparência publica.
O Avesso da Pele narra a história do protagonista Pedro que, após a morte do pai, um professor assassinado em uma abordagem policial, busca resgatar o passado da família e refazer os caminhos paternos. Por meio dos personagens, a narrativa retrata diferentes estágios de percepção racial no País e a angústia de enfrentar o racismo.
A avaliação do Ministério classifica o livro como adequado para ser trabalhado entre turmas do 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio. O solicitação do material para uso em aula, porém, fica a critério do plano pedagógico das escolas.
“Sem tal discussão, há pouco espaço para promoção dos avanços educacionais, sociais e econômicos de que todos os brasileiros precisam”
Parecer do MEC sobre ‘O Avesso da Pele’
O livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, foi aprovado para uso no Ensino Médio pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) ainda na gestão de Jair Bolsonaro (PL). A aprovação ocorreu por meio de portaria em 2022, após convocação em edital de 2019. O parecer do MEC de abril, revelado agora, reitera a avaliação feita pelos avaliadores à época da aprovação.
A retirada da obra começou com a queixa de uma diretora de uma escola estadual do município de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, que a classificou como “vocabulários de tão baixo nível” oferecidos pelo PNLD.
A publicação da funcionária pública se alastrou pelos demais estados, que retiraram a obra de seus catálogos. A medida causou repercussão nas redes sociais e foi criticada pela ministra do Ministério da Cultura, Margareth Menezes.
“Nosso total repúdio a qualquer tipo de censura em relação à nossa literatura”, disse Menezes, em abril, durante conversa com jornalistas em Brasília.
Os avaliadores do MEC afirmam que O Avesso da Pele, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Romance, traz uma narrativa “ao mesmo tempo sensível” e “brutal” que retrata um “contexto sociocultural marcado por diversos tipos de violência, que precisam ser trabalhados em sala para que não sejam naturalizados ou assimilados de modo acrítico.”
“É uma narrativa ao mesmo tempo sensível, pela construção da linguagem e, por vezes, brutal, quer pela construção temática, quer pelo tratamento da linguagem. Essa linguagem traz imagens e situações criadas pelo tom confessional e autoficcional que a narrativa assume desde o início, retratando um contexto sociocultural marcado por diversos tipos de violência, que precisam ser trabalhados em sala para que não sejam naturalizados ou assimilados de modo acrítico”
Parecer do MEC sobre 'O Avesso da Pele'
Livros retirados de escolas
Neste ano, a retirada de livros de escolas foi além de O Avesso da Pele. Em maio, a prefeitura de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais, mandou suspender o uso em sala de aula de O Menino Marrom, obra de Ziraldo de 1986.
O município afirmou que medida foi tomada “diante das diversas manifestações e divergências de opiniões” que poderiam levar a “interpretações inadequadas.”
A obra narra a história de dois amigos, um branco e um negro, que tentam entender a diferença de pele entre os dois. Alguns pais teriam se queixado de trechos em que a dupla sugere um “pacto de sangue.”
A suspensão causou polêmica entre pais favoráveis e contrários à medida e o caso parou no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Em junho, um juiz ordenou a reintegração de O Menino Marrom às bibliotecas e escolas, sob pena de multa diária de R$ 5 mil.
Em São José dos Campos, São Paulo, o livro Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas (editora Mostarda), de autoria de Flávia Martins de Carvalho, também foi retirado de sala, em junho, sob acusação do vereador Thomaz Henrique (PL) de “apologia ao aborto.”
A obra é escrita em versos e conta com ilustrações de cada mulher homenageada. Para o vereador, porém, o “livro defende os ‘direitos reprodutivos’ da mulher e o direito da mulher ‘escolher ser mãe ou não’, além de chamar os contrários ao aborto de ‘gente chata’”, como escreveu nas redes sociais.
O Ministério Público paulista pediu explicações à prefeitura de São José dos Campos e a editora Mostarda afirmou repudiar “qualquer tipo de censura” e disse que obras “promovem o pensamento crítico e o exercício da cidadania devem permanecer nas escolas, sem quaisquer impedimentos de ordem autoritária.”
Formação de leitores críticos
Em entrevista ao Estadão, Jeferson Tenório, autor de O Avesso da Pele, afirma que a retirada de livros com temas sociais prejudica a formação crítica dos alunos.
“A literatura provoca tensionamentos e o prejuízo que isso causa ao aluno é de não ter contato com reflexões em um local de formação de cidadãos”, defende.
Para o escritor, campanhas políticas de extrema-direita têm propagado, como no passado, que os leitores vão repetir ou seguir o que é escrito. Ele cita o caso de Madame Bovary (1856), de Gustave Flaubert, proibido para as francesas da época por receio das autoridades em estimular o adultério.
Segundo Tenório, a literatura, ao contrário do afirmado nas campanhas de censura, ajuda na reflexão sobre a sociedade em que já se vive - e que os professores têm instrução adequada sobre como abordar o livro com os estudantes. “Acho que a literatura tem esse papel de desnaturalizar muitos contextos”, conclui.
Após o episódio de censura, O Avesso da Pele se tornou um dos mais vendidos da Amazon - as vendas do livro aumentaram 400% com o episódio de sua retirada das escolas.
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