Análise | Ziraldo ensinou a várias gerações o significado de rebeldia

Ele ainda é visto, de modo geral, como duas personas separadas, o chargista subversivo e o autor de histórias para crianças

PUBLICIDADE

Por André Cáceres
Atualização:

Embora Ziraldo, que morreu aos 91 anos, seja mais lembrado como cartunista do que como escritor, o impacto na literatura infantil de fenômenos editoriais como A Turma do Pererê, Flicts e O Menino Maluquinho colocam o mineiro de Caratinga na mesma prateleira de Ruth Rocha, Monteiro Lobato e Pedro Bandeira.

PUBLICIDADE

Isso já bastaria para justificar sua posição como um colosso da cultura nacional, mas ele foi muito além. Iniciada nos anos 1950, sua obra formou gerações de leitores e influenciou artistas brasileiros do porte de Laerte.

Um dos pilares d’O Pasquim, icônico jornal independente, Ziraldo foi preso em três ocasiões durante a ditadura militar. Brincando com os limites da censura, abordou em suas charges temas urgentes da época, como a repressão estatal, e assuntos que só teriam a devida importância reconhecida décadas mais tarde, como a demarcação de terras indígenas, o desmatamento e a superpopulação. Assuntos densos, mas que ele evocava com leveza e humor.

Ziraldo na Bienal do Livro de São Paulo, em 1994. Foto: Luludi/Estadão

A postura ideológica firme de Ziraldo, autor do logotipo do Psol, nunca significou proselitismo político, panfletarismo ou abandono do rigor estético. Suas referências visuais vão desde o cubismo de Pablo Picasso, evidente em seu monumental Mural do Canecão, ao traço fino de Saul Steinberg, Hergé e Jean-Jacques Sempé, como se pode ver em suas criações da fase mais madura, com rosto longilíneo, corpo retangular, pernas finas e mãos e pés superdimensionados. Seus primeiros personagens, no entanto, remetem a Bucky Rogers e Flash Gordon, revelando a influência que ele teve de Will Eisner e dos quadrinhos norte-americanos. Essa filiação, porém, foi subvertida por meio de personagens como a Supermãe e os Zeróis, que usam os clichês das histórias em quadrinhos de super-heróis como matéria-prima para a originalidade.

Publicidade

Sem levantar bandeiras identitárias, Ziraldo incorporou organicamente a diversidade em sua obra, aliando personagens brancas, negras e indígenas com naturalidade. Além disso, sempre prezou por retratar paisagens, animais e figuras tipicamente brasileiras, alimentando certo orgulho patriótico saudável, bem distante do nacionalismo capenga de slogans repetidos à exaustão.

Seus interesses pessoais iam da imensidão do espaço sideral ao futebol, temas recorrentes em suas chagres. Como artista gráfico, aproximou-se também do cinema ao assinar cartazes de clássicos como O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, e Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra, além do pôster da 45ª Mostra Internacional de Cinema, em 2021.

Embora multifacetado — cartunista, chargista, ilustrador, escritor, cronista, jornalista, editor, artista gráfico, pintor etc. —, Ziraldo ainda é visto, de modo geral, como duas personas separadas, o chargista subversivo e o autor de histórias para crianças. Essa maneira de avaliá-lo, porém, não leva em consideração o fator mais relevante de sua produção artística: ao injetar humor nas críticas ao regime militar e ousadia na literatura infantil, Ziraldo ensinou aos adultos o riso diante de tempos difíceis e às crianças a importância de não se curvar à autoridade. Por mais distintas que pareçam as duas vertentes, elas não deixam de ser gradações de um mesmo espectro. Seja pelo riso ou pela irreverência, Ziraldo ensinou a várias gerações o significado de rebeldia.

Análise por André Cáceres

Escritor, crítico e jornalista

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.