Membro da Academia Brasileira de Letras e um dos jornalistas mais respeitados do Brasil, Zuenir Ventura chegou aos 90 anos nesta terça-feira, 1º. O presente, no entanto, foi oferecido aos leitores, com o lançamento do livro Minhas Histórias dos Outros (Objetiva), que chega agora em edição revista e ampliada em relação à obra originalmente publicada em 2005.
Trata-se da reunião de episódios presenciados por Zuenir ao longo de mais de 60 anos de jornalismo, quando testemunhou alguns dos eventos mais notórios da história do País e do mundo. “Sempre tive muita sorte, por acaso encontrei muitas pessoas importantes”, comenta ele, modesto, ao Estadão. A verdade é que, tal qual um Forrest Gump das letras, Zuenir presenciou momentos marcantes, mas teve o talento de saber investigar e de transformar o que viu e ouviu em notícia.
Escrito em ordem cronológica, o livro recupera fatos emblemáticos de sua trajetória, dividindo com o leitor suas histórias com personagens como Nelson Rodrigues, Betinho, Hélio Pellegrino, Darcy Ribeiro e Glauber Rocha. “São figuras únicas, das quais não encontramos semelhantes.” E, ao acompanhar as seis décadas relatadas por Zuenir, o leitor consegue traçar um vasto panorama, desde o suicídio de Getúlio Vargas (1954), passando pelo eufórico governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e pela violência da ditadura militar até chegar ao atentado no Riocentro (1981), que revelou as intenções homicidas do governo, e à anistia, sem se esquecer da chegada da aids até, finalmente, a explosão do narcotráfico.
Na verdade, antes mesmo de exercer o jornalismo e manter contato direto com personalidades, o mineiro Zuenir Ventura fez faculdade no Rio de Janeiro, onde estudou com professores notáveis, como Cleonice Berardinelli, Alceu Amoroso Lima, Celso Cunha, José Carlos Lisboa, Bela Josef e o mais famoso deles, o poeta Manuel Bandeira, que ministrava literatura hispano-americana.
“Míope e dentuço, ainda assim vaidoso – gostava de ‘ser fotografado, traduzido, musicado’, como confessava –, Bandeira, com seu constante pigarro, não constituía por si só uma atração numa sala de aula. O que era originalidade na sua poesia – a falta de solenidade, ‘o gosto humilde da tristeza’, como dizia, o jeito espontâneo de transformar em poema seu cotidiano, sua família, seus amigos – nem sempre ajudava o professor, que competia no mesmo elenco com ‘atores’ como Alceu, Lisboa e Cleonice, que faziam de suas aulas espetáculos de expressão verbal e corporal”, escreve, em Minhas Histórias dos Outros, título que tem uma justificativa.
“Considero o livro uma alterbiografia, ou seja, eu me apoio na história de outros para contar a minha própria”, explica Zuenir, que aproveitou o isolamento social forçado pela pandemia da covid, no ano passado, para retrabalhar os capítulos, atualizando o que era possível. “O que foi bom pois, se o livro publicado em 2005 terminava de forma sombria, este agora tem um final mais esperançoso.” O que explica isso é justamente a última história, A Saga de uma Testemunha. Trata-se do episódio em que Zuenir participou mais diretamente, tornando-se um personagem que mudou o curso da história. É o capítulo sobre Genésio Ferreira da Silva, testemunha fundamental na condenação dos assassinos do ambientalista Chico Mendes, em 1988, no Acre.
Na época, Genésio tinha 13 anos e trabalhava em uma fazenda onde presenciou os próprios patrões planejando matar o seringueiro. Designado para cobrir jornalisticamente o caso, Zuenir decidiu levar o adolescente para sua casa, no Rio, a fim de protegê-lo de um provável assassinato, a conhecida queima de arquivo.
Foi um ato corajoso, humanitário, mas também controvertido, pois Zuenir quebrou seu código ético ao interferir diretamente no acontecimento da notícia. Genésio permaneceu com ele até completar 21 anos e a convivência não foi fácil, pois o jovem, além de sofrer com o alcoolismo, ensaiava voltar ao Acre, mesmo ciente do enorme risco de ser morto. “Foi a história que mais me fez sofrer para contar no livro”, conta o jornalista. “Mas, se na primeira versão, o episódio terminava de forma melancólica, com Genésio lutando contra o vício e tentando se acertar na vida, agora o final é mais feliz: além de ter escrito um livro (Pássaro Sem Rumo), ele me telefonou no ano passado para contar que estava noivo e, melhor, sem beber.”
A passagem do tempo produziu também uma evolução no padrão de comportamentos da sociedade, o que faria com que Zuenir, hoje, desse um final diferente ao da história narrada no capítulo Um Suicídio Mal Contado – trata-se da morte do escritor e médico Pedro Nava que, na noite de 13 de maio de 1984, disparou um tiro na cabeça, em uma praça do bairro da Glória, no Rio. O motivo teria sido um telefonema que recebera horas antes, aparentemente um caso de chantagem promovido por um garoto de programa com quem Nava estaria tendo um caso.
Zuenir trabalhava na sucursal carioca da revista IstoÉ e, chocado com o caso narrado pelos repórteres destacados para cobrir o fato (eles tinham acabado de entrevistar o garoto de programa), decidiu não publicar aquelas informações, alegando que a fonte não era confiável e que faltavam mais evidências – o chantagista dizia ter uma foto tirada ao lado do escritor, mas nunca a mostrou. “Enquanto nós íamos atrás da informação, os amigos de Nava se movimentavam na direção contrária. Eles queriam evitar que a imagem do grande escritor fosse ‘manchada’, como se dizia”, escreve Zuenir, no livro.
Por fim, a matéria foi publicada sem a versão da chantagem, mantendo intacta a honra do autor. “O ‘caso Pedro Nava’ encerra uma das questões éticas mais complexas do jornalismo: os limites entre aquilo que é público e cujo conhecimento é um direito de todos – e um dever do jornalista divulgar – e o que, por pertencer à esfera privada, deve ser mantido como tal”, continua Zuenir, no livro. “Nava era um homem público que escolheu uma via pública para praticar um gesto que, ele sabia, teria repercussão, chegaria à imprensa e seria investigado em suas causas e motivações. O ato final de sua tragédia foi exposto como um espetáculo.”
Se o fato ocorresse hoje, Zuenir garante que publicaria todos os detalhes da tragédia, por mais que a imprensa ainda cultive uma boa dose de tabus e interditos morais. “Atualmente, as pessoas não se chocam ao ler notícias de personalidades homossexuais – basta ver o apoio recebido pelo marido do ator Paulo Gustavo, quando de sua morte”, observa. “A sociedade avançou muito.”
E, se há pontos positivos nessa evolução dos costumes, há também os negativos, que se tornaram ainda mais notáveis com a eclosão da pandemia da covid. “Ao reler o livro, notei que o Brasil atravessou anos dourados, rebeldes e anos de chumbo. Hoje, eu diria que vivemos anos descarados, com a hipocrisia se impondo em meio à terrível sensação de impunidade total. O cinismo é declarado e nem durante a ditadura militar vi um deboche tão grande pela vida humana.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.