Escrito subterraneamente entre 1928 e 1940, em meio à censura, aos julgamentos forjados e aos expurgos incitados pelo líder soviético Josef Stalin (1878-1953), o romance O Mestre e Margarida (Editora 34, tradução de Irineu Franco Perpetuo), de Mikhail Bulgákov (1891-1940), faz com que a alegórica figura de Lúcifer se materialize em Moscou. Desde a epígrafe da obra, extraída do poema Fausto (1808), do autor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), Bulgákov embaralha realidade e ficção, utopia e distopia ao dar voz a Mefistófeles: “Sou parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem.”
Em meio à literatura russa, aparições fantásticas potencializam o sentido de apreensão e ressignificação da realidade. Quando transpassada pelos seres da ficção, a realidade como que se expande e nos permite desvelar as máscaras que encobrem (e castram) o cotidiano. Sendo assim, estabeleçamos uma possível tradição fantástica em que O Mestre e Margarida se insere em diálogo com os autores Alexander Puchkin (1799-1837) e Nikolai Gogol (1809-1852).
No poema O Cavaleiro de Bronze (1833), Puchkin contrapõe o mero funcionário Evgueni à estátua equestre do czar Pedro, o Grande (1672-1725), que hoje paira como um espectro sobre a Praça do Senado, em São Petersburgo. [Em 1925, o Estado soviético renomeou a Praça do Senado como Praça dos Dezembristas, em homenagem ao centenário da revolta capitaneada por oficiais do exército russo que, em dezembro de 1825, lançaram a primeira ofensiva histórica contra o czarismo, ofensiva desbaratada e reprimida pelas tropas do czar Nicolau I (1796-1855).] Em meio a (mais) uma enchente torrencial do rio Neva, o pobre Evgueni teme pela amada Paracha que ficara em casa. Quando o (anti-)herói de Puchkin descobre que seu ninho de amor fora varrido pela inundação, o desespero e a ira de Evgueni o lançam contra a altivez de bronze do czar que, com toda a arbitrariedade da autocracia, mandara erigir São Petersburgo onde antes soçobrava um pântano. Eis, então, que a estátua equestre de Pedro ganha vida e persegue o súdito Evgueni até a morte.
No conto O Nariz (1836), Nikolai Gogol (1809-1852) nos revela que, numa manhã aparentemente rotineira, o barbeiro Ivan Iakovlevitch depara com o nariz do Major Kovaliov no interior de seu pão. Ora, imaginem a surpresa do major ao despertar sem seu nariz, que, sem razão aparente, acabara no rosto do conselheiro de Estado. Kovaliov dá início, então, a uma verdadeira odisseia entre repartições, delegacias de polícia e jornais em busca do nariz – o major tenta publicar um anúncio com a descrição de todas as características do órgão para que alguém o ajude a retomar seu olfato. Súbito, e sem razão aparente, o nariz ressurge no rosto do atônito Kovaliov no dia seguinte. [Aqueles que acompanham a política brasileira contemporânea sabem que, sem razão aparente, condenações podem despencar (e se ausentar) ao ritmo da desaparição (e do retorno) do nariz gogoliano.]
Em O Mestre e Margarida, o poeta Ivan Nikolaievitch Ponyriov, atônito, diz às autoridades soviéticas que o Diabo em pessoa antevira a decapitação de seu colega editor Mikhail Aleksandrovitch Berlioz por um bonde e que Satanás lhe contara toda a verdade sobre o diálogo insólito entre Pôncio Pilatos e Jesus Cristo às vésperas da crucificação. Já Nikanor Ivanovitch Bossoi, presidente da associação de moradores do prédio n.º 302-bis, à rua Sadovaia, em Moscou, dirige-se ao apartamento n.º 50, onde o falecido Berlioz morava, para tomar as devidas providências burocráticas. Lá chegando, Bossoi precisa lidar com o séquito mefistofélico que, encabeçado por “um gato enorme como um porco castrado, preto como fuligem ou como uma gralha, com arrojados bigodes de cavalaria”, já se apoderara do imóvel. O Diabo e seus asseclas mostram a Bossoi um (suposto) contrato de aluguel que Berlioz lhes repassara e, para endossar a credibilidade da estória, eles oferecem ao presidente da associação de moradores uma trégua de algumas centenas de dólares. Quando Bossoi imagina que a poeira se assentou, a onipresença das autoridades soviéticas bate à sua porta. Eis que o gato diabólico (e falante) fizera uma delação por telefone passando-se pelo vizinho de Bossoi – cidadão/camarada que bem poderia ter a pretensão de amealhar o apartamento alheio após a prisão do presidente condominial.
Senhor do presente e do futuro, Mefistófeles já sabia de antemão que Bossoi esconderia os dólares antissoviéticos no duto de ventilação de seu banheiro. Quando o atônito Nikanor Ivanovitch tenta mostrar às autoridades o (suposto) contrato de aluguel entre o falecido Berlioz e o Diabo, Mefistófeles já lançara mão de sua magia negra para dar sumiço a quaisquer provas. Diante da completa inverossimilhança de seus relatos – afinal, como é que o Diabo teria baixado em Moscou tendo um gato colossal como fiel escudeiro? –, Bossoi tem o mesmo destino do poeta Ivan Nikolaievitch: secundados pelos agentes da polícia política, os psiquiatras estatais decretam, sem mais, o expurgo manicomial.
Se tivermos em mente que Mefistófeles e os mandachuvas diabólicos de Bulgákov descendem do czar de bronze puchkiniano e farejam a realidade com o nariz de Gogol, o fantástico e a razão de Estado – a mesma (des)razão que só viria a permitir que O Mestre e Margarida fosse publicado em 1967, após a morte de seu autor – despontarão com umbilical cumplicidade. Quando descobrimos que as ações fantásticas do Diabo acabam sempre corroboradas pelas engrenagens do poder soviético, Mefistófeles ganha uma aura alegórica, a ponto de o abracadabra de Lúcifer inverter a epígrafe do Fausto diante das afinidades sumamente eletivas entre utopia e distopia na União Soviética: “Sou parte da força que eternamente deseja o bem e eternamente faz o mal.”
*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com estágio doutoral na Northwestern University (EUA)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.