Ao vasculhar processos judiciários em arquivos franceses, Arlette Farge, historiadora conhecida por importantes livros sobre a vida social no século da Luzes, topou com um documento singular, datado de 1794: o diário de um certo senhor Montjean, relatando minuciosamente as frustrações de um marido traído. Quase 70 páginas manuscritas, sem ortografia e pontuação – como era comum em pessoas com pouca cultura – escritas num ritmo alucinado, difícil de acompanhar. A personagem principal do relato, contudo, não é o narrador, mas a sua esposa, com suas alterações no comportamento, reviravoltas na rotina e aventuras amorosas. Este registro surpreendente é o tema do novo livro da historiadora, A Revolta da Senhora MontJean: a História de uma Heroína Singular às Vésperas da Revolução Francesa.
Do pouco que é possível saber, Montjean era um exemplo típico da classe dos artesãos na sociedade francesa do Antigo Regime, que incluía trabalhadores independentes, proprietários de pequenos negócios, chapeleiros, costureiros, marceneiros, padeiros, entre outros ofícios. Ele era um artesão modista, auxiliado no ateliê pela mulher e uma vendedora. Pelas informações do Diário, o casal tinha uma filha de 3 anos e uma cozinheira que cuidava dos serviços da casa; e a senhora Montjean exercia uma importante função como auxiliar do marido, preparando as encomendas de roupas que chegavam de vários lugares, incluindo Prússia e Holanda. Na estrutura de trabalho do ateliê Montjean, como era comum na época, a presença da esposa do mestre artesão era decisiva: é ela quem comanda os ajudantes eventuais, recebe as visitas de pessoas importantes, registrando suas encomendas e administrando contratos. O ambiente da confecção das roupas é bastante complexo na época, intensamente personalizados – e o vestuário e a aparência constituem o apanágio e os arquétipos de uma classe social.
Prazeres
A reviravolta começa quando, após passar um mês no campo, na casa de seu pai, a senhora Montjean se recusa a trabalhar e passa a viver uma vida de prazeres, persuadida de que – nas suas próprias palavras – “um homem devia sustentar sua mulher” e que esta deveria ter como ocupações simplesmente passear, cuidar da aparência e ter relações mais ou menos amorosas, na companhia de homens e mulheres de status social mais alto que o seu. O diário é a descrição detalhada e, portanto, atormentada, dos jantares, festas, passeios e saídas escusas da senhora Montjean. Misturam-se nas descrições do marido tanto as cenas de ciúmes quanto as cenas nas quais o artesão lamenta o desperdício e a dilapidação do seu patrimônio – já que todas as farras da esposa eram cobertas com seu dinheiro.
O relato é uma espécie de “escrita de si” – uma imersão na mente do marido, perturbado pelo comportamento da mulher, corroído pela infelicidade, pela perda de seus bens e de sua reputação social e profissional. Brigas virulentas esboçam quadros venenosos e os sentimentos explodem quando, na escrita, se removem as barreiras de quaisquer recalques, revelando inúmeras situações raramente lidas por meio da pena de uma pessoa pouco instruída. Montjean chega a recorrer ao Comissário após o desaparecimento, por dois dias, de sua mulher – reencontrada logo depois em lugar aristocrático e, segundo o registro do marido, “usando vestuário suntuoso, levemente alcoolizada e com muito ruge berrante nas faces, típico de mulheres da vida”. O artesão recorre ainda ao próprio sogro, o senhor Rouhault, o qual, também incapaz de entender o comportamento da filha, recomenda aquilo que era mais comum na época: sua internação forçada num convento. Mas não sabemos sequer como termina a história, pois o diário é bruscamente interrompido em janeiro de 1775. O que a historiadora pode fazer com um registro tão inusitado e ainda por cima incompleto, no qual o próprio tormento psicológico de Montjean funciona como um freio à consciência histórica?
Foucault
Com sua experiência, adquirida a partir do seu trabalho conjunto em arquivos judiciais, anos atrás, com Michel Foucault – Farge mostra, em minúcias, o quanto o diário oferece um esboço histórico das vidas pouco conhecidas de artesãos – este grupo social imprensado entre a aristocracia e a burguesia ascendente, nas décadas anteriores à Revolução Francesa. Passando grande parte de sua vida imersa nos incomensuráveis arquivos de manuscritos franceses, Farge consegue capturar as tonalidades intensas da vida, os idiomas do intercâmbio social e a constante anulação dos desejos das pessoas comuns, especialmente as mulheres, na Paris do século 18. Neste aspecto, o diário é revelador, pois raramente vemos situações conflituosas da vida cotidiana descritas por uma pessoa pouco instruída, uma escrita distante – muito distante – das descrições cultas da escrita iluminista. Contudo, diferentemente do Menochio de Carlo Ginzburg (em O Queijo e os Vermes) o qual, ao falar dos livros aos inquisidores, revela a visão de mundo de sua época, o relato de MontJean é original exatamente porque ilustra fatos íntimos do cotidiano de um pequeno grupo social sem nenhuma referência ao ambiente político e social: é que o ritmo intrépido do diário senhor Montjean, angustiado por inumeráveis problemas, dividido entre o afeto pela mulher e o constrangimento social de marido traído –, o impede de viver completamente a sua época. Daí o cenário histórico desaparece e cabe à historiadora recolher indícios para a dura tarefa da reconstituição histórica.
Embora a senhora Montjean, em parte devido ao próprio registro fragmentado, represente uma peça dramática de teatro com cenas faltantes e um roteiro impensável naquela época, ela revela a implacável distância entre as classes, a força do mimetismo social e os conflitos sociais internalizados pela sua condição feminina. Trabalhar nos tecidos não era o objetivo da senhora Montjean – o que ela queria mesmo era estar vestida com eles. O mundo aristocrático possuía tudo que lhe era altamente desejável: as carruagens, os tafetás, os empregados de libré, as formas exacerbadas da vida libertina. A busca do prazer, não tolhida por quaisquer restrições sociais, transforma-se no único valor digno a se almejado. Afinal, o drama da senhora Montjean é o mesmo daquela sociedade popular: aristocrata ou dama de sociedade, ela nunca será. Ao querer sair da sua condição, a esposa ambiciosa e volúvel revela todos os limites do seu próprio destino. Uma vida na qual o trabalho vira tédio, em que os filhos necessitam de uma boa parte dos seus cuidados, em que os seus desejos são contrariados porque não estão de acordo com seu status nem com a sua reputação e que representam o agir de uma classe que ela rejeita. O seu drama está bem no centro do descompasso aberto pela sociedade do Antigo Regime.
Guia
Ao passar pelo crivo da sensibilidade da historiadora, o diário, embora esteja aquém de um micro-história, se transforma num guia para um universo subjetivo completamente à margem das trilhas já tão batidas de uma história sociocultural. O relato vira um fragmento importante da História, pois funciona como um experimento narrativo – não necessariamente verdadeiro –, mas atraindo como um imã novos significados, sobretudo aqueles que não se realizaram: personagens que tiveram seus futuros proibidos e suas vidas perdidas no turbilhão de eventos históricos monumentais. A contrapelo, o diário expõe a sensibilidade e os afetos de uma mulher emparedada pelos círculos de ferro da sociedade do Antigo Regime, e diferentemente de uma Madame Bovary (com a qual Farge até ensaia uma comparação), mais do que a fuga pela paixão, Montjean busca o atordoamento, a embriaguez e a vertigem. Contraponto oblíquo aos universos subjetivos da nossa atualidade, empobrecidos pela banalidade dos contatos, pelo mimetismo trivial e pela espetacularização da intimidade cotidiana –, o universo dos afetos da Sra. Montjean vira parte do feminino recalcado naquele ambiente vulcânico de paixão e indignação moral que viraria do avesso a sociedade do Antigo Regime. Neste caso, a História não nos dá lições, apenas oferece novas perspectivas, através das quais se movem leitores e leitoras.
A Revolta da Senhora MontJean: a História de uma Heroína Singular às Vésperas da Revolução Francesa
Autora: Arlette Farge
Tradução: Maria Alice Sampaio Doria
Editora: Bazar do Tempo
160 páginas
R$ 58 ou R$ 43,50 (E-book)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.